Georgi Karev havia
reunido os netos mais velhos para fazer uma busca pelo terreno da casa e
arredores da floresta, deixando uma ordem expressa para que os mais novos não
saíssem de dentro da casa. Entre os que foram deixados para trás estavam Jack,
Julie e Parvati, inconformados em não poderem ajudar na busca por Rambo. Os
três ficaram na varanda vendo os primos carregando lanternas e ouvindo as
instruções do avô, e no minuto que a avó se distraiu com os mais novos dentro
de casa, Julie e Parvati dispararam na direção da floresta. Jack ainda tentou
convencê-las a ficar, mas elas nunca o ouviam.
Munidos de apenas uma
lanterna que um dos primos havia deixado pra trás, as duas perderam a trilha de
vista poucos minutos depois de entrarem na floresta. Sem perceber que estavam
caminhando em um terreno sem marcação, continuaram indo cada vez mais fundo
procurando pelo pastor alemão. Um trovão ecoou e um raio caiu a poucos metros
de distancia de onde eles estavam.
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O som do raio atingindo a árvore me acordou. Cai da cama
assustada e no mesmo instante minha cabeça de encheu com o som dos sonhos de
todas as meninas da república. Meu coração estava disparado com o susto no
sonho e não conseguia me concentrar para que as vozes parassem. Tudo que
consegui fazer foi agachar no chão com as mãos tapando os ouvidos e gritar.
- Parvati, o que houve? – Leo apareceu na minha frente, um
semblante assustado.
- O que aconteceu? – Jude surgiu atrás dela, a mesma
expressão assustada.
- Alguém vá chamar o Ozzy, rápido! – Leo gritou agachando ao
meu lado e vi Flora correr em direção à porta.
A imagem de Leo tentando me erguer do chão com a ajuda de
Jude e Penny foi a última coisa que lembro. Minha cabeça começou a latejar de
uma forma tão intensa que achava que fosse explodir. Meu nariz começou a
sangrar em seguida e então tudo ficou preto.
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- Ela está voltando – ouvi vozes agitadas e reconheci uma
delas como sendo de Ozzy – Parv? Está me ouvindo?
- O que aconteceu? – perguntei com a voz fraca. Minha cabeça
ainda doía, mas não como antes, e não ouvia mais nenhuma voz.
- Você acordou gritando e desmaiou, nos deu o maior susto! –
Leo respondeu ainda com a voz abalada – Saiu tanto sangue do seu nariz que
Penny ameaçou desmaiar também.
- O que houve? – Ozzy perguntou com a voz calma, alisando
meu cabelo – Estava sonhando com alguma coisa?
- Com a casa do lago outra vez. Entrei na floresta com Jack
e Julie e uma arvore do nosso lado foi atingida por um raio. Foi quando acordei
assustada com o barulho – olhei para Ozzy me esforçando para não começar a
chorar – Não aguento mais isso. Sempre que sonho com isso fico tão atordoada
que não consigo manter o controle. O que vai acontecer quando você não estiver
aqui pra me ajudar?
- Eu sempre vou estar aqui – ele beijou minha testa e me
puxou mais pra perto dele.
- Então fica aqui essa noite, por favor. Se você estiver
aqui não vou sonhar com isso.
- Não sei, Parv, não é muito legal... – ele olhou para as
meninas, incerto – E se algum professor aparecer...
- Se tudo que fizer for abraçá-la, pode ficar aqui essa
noite – Leo falou e as meninas assentiram.
- Obrigada – sussurrei pra ela, enquanto Ozzy envolvia os
braços em volta de mim.
- É, mas não acostuma – Leo atirou uma almofada pra ele e
voltou pra sua cama – É só essa noite.
Não foi só aquela noite. Com Ozzy abraçado a mim a noite
inteira, não voltei a sonhar com a casa do lago, tampouco acordei assustada com
vozes invadindo minha mente. E quando na noite seguinte elas tiveram que
chama-lo na Kratos porque eu estava mais uma vez a ponto de desmaiar, ele
passou as duas noites seguintes comigo sem nem ao menos ir para a sua república
na hora de dormir.
- Você se acomodou – Leo disse enquanto caminhávamos para a
aula de educação física – Ficou confortável pra você tê-lo do seu lado a noite
inteira e não está pensando em uma maneira de resolver isso sozinha.
- Nem eu passo tanto tempo assim dormindo no quarto de vocês
– Robbie completou – Se algum professor resolve dar uma incerta nas repúblicas,
vocês estão ferrados.
- Não estamos fazendo nada demais – me defendi, mas sabia
que estava errada e eles não precisaram fazer nada além de me olhar sérios – Eu
sei, eu sei, tenho que me virar sozinha. Só não sei como fazer isso.
- Bom, se bem me recordo das divertidas aulas de Adivinhação
que tínhamos até dois anos atrás, a professora Silmeria diria que o fato de
você sonhar sempre com a mesma coisa significa que não é um sonho, mas sim uma
lembrança. E existe uma mensagem nessa lembrança que você precisa decifrar.
- Uma mensagem, certo. Mas que mensagem? – perguntei
impaciente.
- Sei lá, ora! É a sua lembrança, o que aconteceu naquele
dia que você deveria saber? Algum acidente ou experiência que mudou sua vida?
- Até onde sei, não aconteceu nada demais. Ninguém morreu ou
desapareceu, o cachorro do meu primo viveu até ficar bem velhinho, então o
encontramos naquela noite.
- Alguma coisa aconteceu, ou você não estaria sendo quase
assombrada por essa lembrança – Leo disse e Robbie assentiu, mas eu ainda não
estava convencida.
- Não aconteceu nada, além de Julie e eu nos perdermos na
floresta. Desobedecemos meu avô, Jack não quis ir, ele nunca desobedecia a uma
ordem, mas nós duas éramos teimosas, fazíamos o que queríamos e éramos
inseparáveis. Não sei o que posso estar deixando- - parei de repente, minha
cabeça começando a latejar, mas não era por causa das vozes, mas porque tinha
acabado de entender – É ISSO!
- Isso o que? – Leo perguntou rindo, quando Robbie saltou
assustado.
- Jack disse que pra fazer as pazes com Julie eu tinha que
lembrar como era quando éramos crianças – eles me olharam como se eu fosse
maluca – No Halloween, quando o fantasma dele apareceu.
- Tinha esquecido essa informação, sabe que não gosto de
fantasmas – Robbie se benzeu e revirei os olhos.
- Que tipo de bruxo é você?
- Leo indagou e rimos.
- Fantasmas me dão arrepio. São pessoas mortas, elas não
deveriam andar por ai! – ele respondeu
mal humorado, mas não dei confiança.
- Certo, já sei o que fazer, mas não sei como. Sempre acordo
no meio do sonho, preciso descobrir um jeito de não acordar.
- Não faço ideia de como ajudar, a menos que acertar sua
cabeça com um taco de beisebol seja uma opção – Leo sugeriu e Robbie desfez a
cara feia, rindo.
- Essa não é uma opção.
- Ei, vocês três, já posso começar a aula ou precisam de
mais tempo para tricotar? – Maddox gritou do meio da quadra.
Apertamos o passo e logo já estávamos junto do resto da
turma. Robbie, Leo e eu quase nunca participávamos das aulas de educação
física, mas como Leo agora era adepta da malhação nos deixava faltar muito
pouco. Por mais que os exercícios do curso de auror fossem de treinamento
militar, odiava aquela aula. Eram as duas horas semanais que a turma tinha pra
se transformar em um bando de selvagens. Os jogos eram sempre violentos demais
e por mais que o professor apitasse faltas o tempo inteiro, alguém sempre saia
machucado.
Hoje a partida seria de handebol e eu já estava querendo
chorar. Pelo menos Maddox separou os garotos das garotas, mas a partida não foi
menos violenta. Parei de contar quantas vezes já tinham me jogado no chão com
uma trombada ou quantas boladas tinha levado antes da metade do segundo tempo. Quando
as duas partidas terminaram, Finn estava cuspindo sangue pra todo lado.
Colocaram ele como goleiro e Robbie, em um surto de força, acertou a bola de
couro em cheio na sua boca. Ele não parava de pedir desculpas e apesar de Finn
estar dizendo que não tinha problema, os garotos riam tanto que não estavam
ajudando nem um pouco.
- Pronta pra sessão com o Dr. Pace? – Ozzy me abraçou quando
saímos dos vestiários, ambos de banho tomado e limpos outra vez. Encolhi o
corpo quando seu braço bateu em um dos hematomas – Foi massacrada hoje?
- Hoje fui o saco de pancada, me derrubaram centenas de
vezes – reclamei fazendo careta e ele riu.
- Se serve de consolo, a boca do Finn inchou e Derek quebrou
o nariz.
- É, ajuda um pouco.
Caminhamos juntos até a sala do Dr. Pace e ele parecia
bastante ocupado quando entramos, mas como sempre fazia, colocou as pastas de
lado e abriu um sorriso acolhedor. Desde que começamos a namorar, o sorriso no
rosto dele se transformou em um misto de satisfação e cautela. Mesmo se dizendo
feliz por termos resolvido nossos problemas, recusava-se a nos liberar. Há dois
meses ficaria indignada, mas já estava tão acostumada ao nosso bate papo
semanal que ia sentir falta se não precisasse mais das sessões. Então quando
ele disse que elas continuariam, não houve contestação.
- Parvati, algum problema? – Dr. Pace chamou minha atenção
no meio da conversa.
- O que?
- Está distraída. Perguntei por que não gosta das aulas de
educação física.
- Desculpa. Não estava prestando atenção.
- Algo está lhe incomodando? – assenti e Ozzy me encarou –
Diga o que é, vamos ver se encontramos a solução.
- Acho difícil. É um sonho que tenho quase todo dia, sempre
acordo incapacitada de me concentrar e acabo perdendo o controle. É mesmo a
mesma coisa.
- Não é um sonho então, é uma memória – ele repetiu as
palavras de Robbie.
- Sonho ou memória, não consigo me livrar dele. E nunca vou
até o fim, sempre acordo com o trovão. Se é mesmo uma memória, então tenho que
ver tudo. Acho que só isso vai me fazer parar de sonhar. E é impossível, não posso
controlar até que parte do sonho quero ver.
- Talvez não – Ozzy falou – Acho que posso ajudar.
- Como? – Dr. Pace perguntou primeiro.
- Lembra que minha irmã disse que nossa habilidade vai muito
além de ler mentes? – ele respondeu olhando pra mim – Uma das coisas que
podemos fazer é algo que ela chama de “mente presa”. Podemos criar uma ilusão ou
um sonho e prender a pessoa nele. É como se ela tivesse em coma, mas sua mente
está presa naquela ilusão. Nada pode acordá-la, a menos que quem a prendeu a
desperte. Ela fica vivendo naquela ilusão até ser despertada.
- Então você pode me forçar a ver todo o sonho? – ele assentiu,
mas Dr. Pace parecia alarmado.
- Isso não é perigoso? – ele perguntou, incerto se aquela
era mesmo a solução.
- Só se eu não despertá-la, o que não vai acontecer. Se a
pessoa viver muito tempo presa na ilusão, pode acordar um pouco maluca.
- Se não tem perigo, vamos fazer isso agora mesmo! – disse ansiosa,
já deitando no sofá – Faça o que tiver que fazer, estou pronta. Confio em você.
- Eu sei o que fazer, não se preocupe – ele falou olhando
para o Dr. Pace, que ainda não estava muito seguro, depois olhou pra mim – Vou ver
o mesmo que você quando tiver dormindo. Quando perceber que já encontrou o que
queria, a trarei de volta.
Assenti sem nem pensar duas vezes, confiava nele, e fechei
os olhos. Senti suas mãos na minha testa e segundos depois estava de volta ao
sonho. Não sei se ele mesmo tinha me colocado lá ou se eu automaticamente
voltei à floresta, mas já tinha descrevido o sonho a ele tantas vezes que ele
pode ter criado tudo sozinho.
Estava mais uma vez na floresta, sozinha com Julie. O raio
havia acabado de atingir a árvore ao nosso lado e o susto que levamos foi tão
grande que Julie deixou a lanterna cair e no desespero de encontra-la, prendi
meu pé em uma raiz de árvore e o torci. Entramos em pânico imediatamente, mas
Julie conseguiu se recompor e estava fazendo de tudo para me acalmar. Eu, com
meus sete anos, estava fazendo o que qualquer criança naquela idade, machucada
e na chuva, perdida em uma floresta faria: chorava sem parar, chamando pela
minha mãe.
- Fica calma, Parv – Julie dizia sem parar, abraçada a mim
no chão – Jack vai avisar ao vovô que entramos sozinhas e eles vão nos
encontrar.
Não adiantava, eu não conseguia me acalmar. Continuei chorando,
até que Julie tirou uma corrente que tinha no pescoço e me deu. Era um pingente
em forma de trevo de quatro folhas que sabia ter sido um presente da mãe dela,
Jack tinha um igual. Ela mandou que ficasse com ele porque ele a protegia, e
enquanto eu o tivesse comigo estaria segura. O colar me distraiu e parei de
chorar, mas ao invés de coloca-lo no pescoço, tirei uma das pulseiras que
sempre usava e dei a ela. Era a pulseira que meu pai havia comprado pra mim e
tinham duas dela. Eu deveria dar a outra para Alexis, mas nunca o fiz porque
sabia que ela ia perder e Julie era como uma irmã pra mim, então achei justo que
ficasse com ela. Combinamos que, enquanto usássemos aquele colar e aquela
pulseira, estaríamos sempre uma ao lado da outra.
Pouco tempo depois vimos várias lanternas piscando no meio
da floresta e vovô e nossos primos, Jack entre eles, apareceram na clareira. Rambo
estava com eles, latindo desesperado enquanto farejava o ar. Vovô estava uma
fera, mas tão aliviado por estarmos vivas que não levamos bronca. Quando ele me
pegou no colo, Ozzy me despertou e voltei à sala da terapia. Minha reação imediata
foi colocar a mão no pescoço. A corrente ainda estava lá, nunca havia tirado.
Ozzy me olhava sorrindo, mas Dr. Pace tinha a expressão mais intrigada do mundo
no rosto. Contei a ele o que tinha acontecido.
- Acho que dessa vez não preciso aconselhá-la, não é mesmo? –
ele disse depois de ouvir a história toda.
- Não, eu sei o que preciso fazer.
- Então estão liberados. Vire mais essa página.
Saímos da sala de mãos dadas, mas estava tão nervosa que
estava esmagando os dedos de Ozzy. Sabia que tudo que tinha que fazer era
conversar com Julie. Fazê-la lembrar da promessa que havíamos feito quando só tínhamos
sete anos. A promessa que, de alguma forma, não conseguimos manter. Não conseguia
me lembrar de quando havíamos esquecido ela, mas sentia-me muito triste por
saber que havíamos perdido a amizade que tínhamos. Ozzy me deixou na porta da
Atena e voltou para a Kratos. Aquilo era algo que tinha que fazer sozinha, ele não
podia ajudar daqui pra frente.
Ela estava sozinha na sala de estudos, debruçada sobre
livros de Alquimia, e nem percebeu quando entrei. Ou talvez tenha fingido que não
me viu. A segunda possibilidade me irritou e tirei a corrente do pescoço,
atirando em cima da mesa. Isso atraiu sua atenção e ela a pegou, olhando pra
mim. Acho que ela sequer percebeu, mas quando viu a corrente, sua mão esquerda
automaticamente procurou o pulso direito, onde a pulseira que havia dado a ela não
estava mais.
- Você lembra, não é? – perguntei, mas ela não respondeu – Sim,
você lembra. Posso ter esquecido o que isso significava pra mim, mas nunca a
tirei. Você perdeu um irmão no acidente e me culpa por isso, mas adivinha? Eu também
perdi uma irmã e também me culpo pelo que aconteceu. Todos me dizem que não podia
evitar e existem até provas disso, mas eu sempre vou me culpar, não importa o
que digam ou mostrem. Então se você acha que sua vida é uma droga e ninguém lhe
entende, pense mais um pouco. Sinto sua falta, Julie. Já perdi minha irmã de
verdade, não quero perder a postiça também.
Julie continuou sem dizer nada, apenas me encarando séria. Quando
ela desviou o olhar e passou a encarar fixamente a corrente em cima da mesa,
virei as costas e fui embora. Naquele momento soube que ela nunca ia me
perdoar. Também tinha perdido minha irmã postiça.