‘O que está acontecendo?’ Perguntei apontando para o meu primo ainda colado na parede ‘Isso por acaso é alguma peça entre vocês e os garotos da Chronos?’
‘Sim’ Ele respondeu já erguendo as mãos para me impedir de interromper ‘Não tivemos culpa, Filipe foi pego ontem à noite e não sabíamos’
‘ELE PASSOU A NOITE AQUI FORA?’ Gritei furiosa e ele fez sinal de silencio, pois o guarda-caça nos olhou de lado ‘Micah, ele podia ter morrido congelado!’
‘Eu sei, mas não grite, não tive culpa! Filipe conseguiu se manter aquecido, está bem, mas vai pra enfermaria por algumas horas. O professor Lênin já vai tirá-lo de lá, calma’
‘Você os entregou ao guarda-caça, não é?’ Perguntei desconfiada, pois já sabia a resposta ‘Micah! Se vocês não entregarem, eu entrego!’
‘Você não vai entregar ninguém, fica na sua que a guerra é entre Spartacus e Chronos. Eu não me meto na briga da Avalon com a Atena. Deixa que nós vamos resolver isso, eles vão receber o troco’
Bufei irritada, mas ele me abraçou e acabei cedendo. Ficamos aguardando Filipe descer e o acompanhamos até a enfermaria. Ele estava gelado e mais pálido que nunca, mas parecia animado com tudo aquilo e não reclamava, apenas pedia a Micah que não o deixasse de fora da retaliação. Tinha certeza que em breve aquela guerra ia sair do nosso controle, e ai talvez seja tarde demais para consertar alguma coisa...
*****
‘Fechem os olhos e limpem suas mentes, não pensem em nada’ Ouvia a voz do professor Boris perto de mim. Mesmo de olhos fechados, sabia que ele passava perto de onde estava deitada ‘Deixem a poção fazer efeito e o cheiro do incenso invadir de vocês. Apenas relaxem’
Ajeitei meu corpo no tapete em que estava deitada e podia sentir o cheiro de canela invadir minhas narinas. Era forte, mas bom. Senti a mão de Micah procurar a minha e a apertei, relaxando como o professor havia pedido...
Estava em uma rua da Espanha com a minha família, estavam todos reunidos, até mesmo minha mãe. Vi Max andando de mãos dadas com ela, tinha no máximo 5 anos, e eu segurava a mão do meu irmão, olhando para os lados curiosa. Já anoitecia e de repente a rua foi tomada por homens usando capuzes brancos em forma cônica. Eram muitos e carregavam uma cruz. Soltei a mão de Max e, sem perceber, fui me afastando dele e me aproximando daquelas figuras encapuzadas. Quando dei por mim, já estava perdida. Tudo que via eram roupas brancas por todos os lados e gritava pela minha mãe, mas ninguém me ouvia.
Já chorava desesperada por não encontrar ninguém quando senti uma mão agarrar meu pulso e me puxar com força para fora da procissão. Era meu tio Ivo. Ele me arrastava de volta para a calçada ignorando meus soluços de choro. Quando chegamos a uma parte da rua menos tumultuada, pude ver minha mãe chorando nervosa, olhando para todos os lados.
‘Ella! Não posso passar por isso de novo!’ Ouvi ela dizer nervosa, gesticulando para tia Madalena
‘Eva, acalme-se! Vamos encontrar a Evie!’ Minha tia segurou os braços da minha mãe, mas ela não se acalmou.
‘Mamãe!’ Gritei me soltando da mão do meu tio e correndo pra ela
‘Evie!’ Mamãe se abaixou e me puxou para um abraço apertado. Ela soluçava incontrolavelmente ‘Ah meu amor, você está bem? Onde estava?’
‘Desculpa. Eu fui ver as pessoas de branco mais de perto e me perdi. Desculpa, mamãe’ Disse chorando assustada. Tinha ficado apavorada por estar vendo minha mãe daquele jeito.
‘Está tudo bem, querida, está tudo bem! A mamãe só estava assustada. Eu olhei para o lado e não vi você, pensei que alguém pudesse tê-la levado embora’
Mamãe me puxou para outro abraço apertado e secou as lágrimas do meu rosto, sorrindo aliviada.
‘Muito bem, acordem’ A voz do professor Boris me trouxe a realidade e quando ele estalou os dedos, abri os olhos assustada ‘Bom dia, acabou o cochilo. Agora cada um de vocês vai descrever o sonho em um pergaminho e entregar ao colega ao lado, para que ele possa interpretar’
‘O que houve?’ Micah perguntou vendo que tinha o olhar vago
‘Não sei’ Respondi olhando para ele ainda aérea ‘Não sei o que aconteceu’
‘Sr. Wade, pegue um pergaminho na mesa e anote seu sonho, depressa’ O professor passou estalando os dedos e Micah levantou apressado ‘Srta. Stanislav, está tudo bem?’
Fiz que sim com a cabeça, levantando do chão e indo pegar o pergaminho na mesa. Descrevi o sonho como me lembrava e entreguei a Micah, recebendo o dele em troca. Foi a analise de sonho mais sem sentido que fiz desde que comecei a ter aulas de adivinhação, mas minha cabeça estava longe. Não consegui mais prestar atenção no resto da aula e quando o professor nos liberou, me separei dos meus amigos e fui direto até o escritório do meu avô. Sabia que era tarde e ele provavelmente estaria dormindo, mas precisava de algumas respostas e não me importava se tivesse que acordá-lo para isso.
‘Vovô! Vovô!’ Batia na porta do escritório sem parar ‘Vovô, preciso falar com o senhor!’
‘Evie?’ Ele abriu a porta de roupão e pela sua expressão confusa, já estava deitado ‘O que aconteceu?’
‘Quem é Ella?’ Disparei a pergunta que estava me consumindo há meses e ele reagiu com espanto.
‘Ella? Não conheço ninguém com esse nome, minha filha’ Ele gaguejou um pouco antes de falar.
‘Vovô, com todo respeito, o senhor não mente bem’ Entrei no escritório sem esperar que ele desse passagem e ele fechou a porta.
‘Minha querida, já está tarde, porque não volta para sua republica? Amanha conversamos’
‘Venho sonhando com uma criança parecida comigo chamada Ella tem alguns meses, agora mamãe também aparece nesses sonhos e eles são muito reais. E hoje lembrei de uma coisa que aconteceu quando eu tinha 5 anos’ Comecei a falar sem parar, não dando tempo dele interromper ‘Lembra de quando me perdi naquela páscoa, no meio da procissão? Quando tio Ivo me encontrou e me levou de volta pra mamãe, ouvi-a falando com a tia Madalena que não podia passar por isso de novo e disse o nome da menina dos sonhos!’ Olhei para ele suplicante ‘Vovô, por favor, quem é essa menina?’
Vovô me olhou cansado e pela primeira vez desde que vovó morreu, o vi abatido. Ele tirou os óculos do rosto e sentou na poltrona, encarando o chão. Parecia tomar fôlego, como se estivesse se preparando para dizer alguma coisa importante. Aguardei ansiosa e depois de segundos que pareceram horas, ele me encarou com uma expressão triste, que já me deixou abalada só por vê-lo assim.
‘Ella era sua irmã’ Ele falou em um tom de voz misturado a um suspiro melancólico ‘Eleanor era o seu nome, Ella era como a chamávamos em casa’
‘Minha irmã?’ Falei surpresa ‘Como era? O que aconteceu?’
‘Ela morreu aos 5 anos, você e Max eram apenas bebês de 1 mês na época, jamais se lembrariam dela’ Fiz menção de interromper, mas ele levantou a mão pedindo que o deixasse falar ‘Seus pais estavam na nossa casa de praia na Espanha e seu pai a perdeu de vista por 2 minutos, então ela desapareceu. Ficamos todos desesperados, procuramos por toda parte, mas só a encontramos na manha seguinte’
‘Trazida pelo mar’ Completei por ele, sem perceber que falava ‘Desculpe’
‘Como sabe disso?’
‘Sonhei com isso. Acordei chorando e passei o dia inteiro mal’ Encarei-o já com lagrimas nos olhos ‘Ela se afogou?’
‘Não sabemos até hoje’ Vovô deu outro longo suspiro e sabia que era por estar admitindo uma derrota ‘Ela tinha marcas de dedos nos braços e pernas e um ferimento na cabeça, mas a policia não soube dizer o que causou a morte dela, se foi por afogamento ou por ter batido em alguma pedra’
‘Por que ninguém nunca me contou isso?’
‘Por que contar? Por que reviver um sofrimento como esse?’ Ele recolocou os óculos no rosto e me encarou ‘Você e Max não tinham como se lembrar e seus primos mais novos sequer a conheceram. Pillar e Andrei mal se lembram dela. Pillar acha que era uma amiga imaginaria. Entendeu dessa forma tudo que aconteceu e Nikolai decidiu que era a melhor maneira de evitar que ela sofresse’
‘Vocês a apagaram da família, então?’ Perguntei indignada ‘Não existe uma foto dela que prove sua existência?’
‘Sua avó guardou muitas fotos, nada foi jogado fora. Se quiser, quando formos para casa posso mostrar a você. Apenas não deixamos muitas lembranças com a sua mãe, a fazia sofrer demais’
‘Eu gostaria de ver essas fotos’ Ele sorriu cansado e assentiu com a cabeça, levantando para me abraçar ‘Desculpe obrigar você a falar disso, mas eu precisava saber’
‘Está tudo bem, não tem problema. Agora volte para a sua republica e tente não pensar nisso’
‘Vou tentar. Boa noite, vovô’
Ele beijou minha testa me desejando boa noite também e sai do escritório. Enquanto refazia o caminho da Avalon, um filme ia passando na minha cabeça. Era como se de uma hora pra outra, fatos isolados da minha infância fossem voltando a minha memória. Coisas estranhas que presenciei e que não lembrava mais, mas que agora que sabia da existência de uma irmã mais velha, tudo fazia sentido. Era impossível deitar sem pensar nela, tinha certeza que ia amanhecer de olhos bem abertos na cama, tentando processar tudo que ouvi. E o pior de tudo aquilo era que alguma coisa me fazia acreditar que minha irmã não morreu afogada no mar.