"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, ria, dance, chore e viva intensamente cada momento de sua vida, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos."
Charles ChaplinDepois da noite agitada de formatura, com a festa terminando mais de 2 horas da manha, havíamos combinado que ninguém podia dormir. Íamos passar nossa última noite em Durmstrang todos juntos, então depois que nossas famílias foram embora, nos reunimos na beira do lago. Vimos o dia amanhecer sentados na grama, encolhidos do frio e tentando nos aquecer com cobertores, enquanto falávamos bobagens, contávamos histórias e fazíamos planos para as férias. Havíamos todos passado a semana inteira adiando aquele momento, mas com o sol já iluminando os jardins, não podíamos mais deixar para depois: era hora de arrumar as malas.
Nos separamos dos meninos no caminho das repúblicas e antes mesmo de pisarmos na varanda da Avalon o clima já era de tristeza. Ao mesmo tempo que estávamos muito felizes pela formatura, estávamos tristes por isso significar ir embora para sempre. A república ainda estava silenciosa, a maioria das meninas dormia sem preocupação, apenas esperando a hora de tomar café e embarcar para as férias de verão, e subimos sem fazer barulho até o sótão.
Cada uma tratou logo de se ocupar com a sua cômoda e tentávamos não conversar, apenas se concentrar em dobrar as roupas e colocar na mala, para evitar que começássemos a chorar. Mas era como tentar evitar o inevitável. Não demorou muito e ouvi Milla fungar baixinho. Olhei para ela e mesmo estando de costas, sabia que estava segurando uma peça de roupa. Ao ouvir Milla ameaçar começar a chorar, Vina não agüentou e caiu em prantos, esfregando um cachecol no rosto. Abandonamos tudo e corremos até ela no mesmo instante.
‘O que foi, Vi?’ Nina perguntou segurando suas mãos.
‘Esse cachecol, ele... ele...’ Vina sacudiu o pedaço de pano e começou a chorar mais alto.
‘Vina, não estamos entendendo o que você está dizendo’ Falei tentando tirar o cachecol da mão dela, mas Vina o puxou com força e afundou o rosto nele.
‘Eu estava usando esse cachecol quando conheci o Victor e o Ricard!’ Vina falou com a voz abafada por ele e a abraçamos todas juntas ‘Eu não quero ir embora!’
‘Ai gente, é melhor arrumarmos essas malas logo, ou vamos inundar o quarto’ Annia se separou do abraço e voltou até sua cama.
Milla e Nina fizeram o mesmo, mas eu não sai do lugar. Minha atenção se desviou por alguns segundos para uma marca na parede atrás da porta. Caminhei até lá e sorri ao passar a mão nos rabiscos. Era onde marcávamos nossa altura, desde que nos mudamos para cá.
‘Lembram de quando começamos a marcar isso aqui?’ Falei apontando para a parede e todas pararam de arrumar as malas outra vez ‘Não consigo me lembrar o motivo’
‘Foi porque vocês falaram que eu ia ficar anã, pois não tinha crescido nada no verão’ Nina falou fazendo uma careta.
‘Ah é verdade, foi logo que começamos o segundo ano’ Milla parou do meu lado na parede e riu ‘Nina quis provar que estava crescendo e acabamos todas marcando a parede no começo de todo ano’
‘Uma pena que as novas moradoras vão acabar apagando isso’ Vina comentou dando um longo suspiro ‘Vou sentir tanta saudade desse quarto... Lembram como viemos parar aqui?’
‘Claro, como vamos esquecer?’ Annia riu ‘Fomos banidas aqui por matar o
Bolhinha da mamãe’ Disse imitando a voz da Olga, a veterana que presidia a republica no nosso primeiro ano e rimos.
‘Aquela garota tinha sérios problemas’ Comentei voltando para minha cama e elas concordaram ‘Por causa daquele peixe idiota, tivemos um primeiro ano difícil’
‘É, ela não facilitou as coisas mesmo, mas a gente se divertiu muito aqui rindo pelas costas dela’ Milla completou e rimos.
‘Meninas?’ Ouvimos uma batida na porta e o rosto de Georgia apareceu pela fresta ‘Posso falar com vocês um minuto?’
‘Claro, Georgia, entre’ Nina respondeu e ela sorriu, entrando no quarto.
‘Não vou demorar muito, sei que estão ocupadas, só queria dizer algumas coisas’ Georgia respirou fundo, como se estivesse tomando coragem, e nos encarou uma a uma ‘Sei que fui uma vaca durante seis anos aqui e nunca ajudei vocês em nada, sempre arrumava um jeito de dificultar as coisas e hoje admito que fazia isso por inveja. Sempre tive inveja da amizade entre vocês, sempre tão unidas. Mas acho que nesse ultimo ano eu mudei e pude até conhecer vocês melhor, o que me permitiu descobrir que perdi seis anos onde poderia ter tido ótimas amigas. Enfim, só queria agradecer por terem me dado esse voto de confiança e dizer que, graças a vocês, hoje posso dizer que tenho amigos de verdade’
Georgia parou de falar e continuou nos encarando, mas logo abaixou os olhos. O primeiro contato que fiz foi com Vina, que deu de ombros parecendo um pouco perdida, então fomos olhando uma para as outras e abrimos um sorriso, indo todas juntas para cima de Georgia e a abraçando ao mesmo tempo, fazendo bagunça. Georgia acabou relaxando e riu.
‘Bom, eu acho que falo por todas aqui quando digo que, contrariando todas as expectativas, hoje também podemos chamar você de amiga’ Falei sorrindo e as meninas concordaram.
‘Mas você foi mesmo uma vaca’ Milla completou e Georgia riu ‘Muito vaca. De verdade’
‘Ok, acho que ela já entendeu, Milla’ Nina falou olhando séria para Milla e rimos.
‘Eu sei, e peço desculpas por qualquer transtorno que tenha causado a vocês’ Georgia falou sorrindo, mas se apressou em secar uma lágrima que queria escorrer ‘Obrigada por tudo que vocês fizeram por mim esse ano, meninas. Não se assustem muito, mas eu amo vocês, ok?’
‘Oohnn!’ Fizemos caras de tia apertando sobrinho fofo e abraçamos Georgia de novo, que acabou não conseguindo conter o choro. Quando nos afastamos ela tinha o rosto todo molhado e o abanava tentando não piorar a situação.
‘Agora preciso ir, ainda quero passar no teatro uma última vez e me despedir do professor Ivo’ Ela sorriu secando o restante das lágrimas e abriu a porta ‘Nos vemos no trem’
Georgia saiu do quarto e depois de nos recuperarmos do choque, demos um tempo nas recordações e voltamos a arrumar nossas malas. Já estávamos acostumadas com o processo de desfazer nossa bagunça nas gavetas e amontoar tudo em uma única mala, mas sempre sem preocupação caso ficasse alguma coisa pra trás, afinal, íamos voltar dentro de dois meses. Agora era diferente, não podíamos esquecer de nada e só de pensar que o motivo era porque não voltaríamos nunca mais, dava até um aperto no coração. Mas cada uma seguiu com a sua arrumação em silencio, controlando a vontade de chorar, e uma hora depois nossas malas já estavam fechadas em cima das camas e as gaiolas com gatos e corujas encostadas no canto perto da porta.
‘É, acho que terminamos’ Nina falou olhando ao redor do quarto ‘Não faltou nada, empacotamos tudo’
‘Mas então porque estou com a sensação de que está faltando alguma coisa?’ Vina suspirou, sentando na beirada de sua cama.
‘Podíamos deixar um registro nosso... O que acham?’ Milla sugeriu.
‘Claro, vamos pixar uma propriedade particular, papai vai adorar’ Annia falou com sarcasmo e rimos.
‘Mas já riscamos a parede, que mal vai fazer mais um pouco de tinta?’ Nina falou dando de ombros ‘E o que pode acontecer? Sermos expulsas?’ E rimos.
‘Se Nina Olenova está dizendo que devemos fazer isso, então é porque não é ilegal’ Falei já animada, puxando uma pena da bolsa ‘E esse quarto foi nosso primeiro, ninguém esteve aqui antes, é nosso direito’
‘Certo, tudo bem!’ Annia se convenceu ‘Mas o que vamos fazer? Só deixar nossos nomes?’
‘Que tal deixar um recado pras próximas gerações de isoladas que morarem aqui?’ Sugeri com um sorriso no rosto e entreguei a pena a Vina ‘Sua letra é mais bonita, você escreve’
‘Escrevo o que e aonde?’ Vina pegou a pena e perguntou.
‘Aqui atrás, assim não fica visível e na primeira arrumação do quarto, elas encontram’ Milla arrastou a cômoda que ficava encostada na parede da janela para o lado, liberando um espaço limpo.
Nos ajoelhamos perto da parede e perdemos um tempo decidindo o que poderíamos escrever, mas logo já sabíamos exatamente o que fazer. Vina molhou a pena no tinteiro e encostou a ponta na parede, começando a desenhar as palavras.
“Atenção, novatas,
Vocês agora são donas de um quarto mágico, e com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Ele não é um quarto qualquer. Aqui, fortes laços de amizades foram construídos. E devemos tudo a esse quarto isolado do resto da república, que permitiu que nos conhecêssemos melhor. Aqui nós crescemos, amadurecemos, regredimos, choramos, rimos, rimos uma das outras, brigamos, fizemos as pazes, nos apoiamos, nos consolamos, sofremos, nos magoamos, juramos odiar garotos, percebemos que não vivemos sem eles, bolamos planos que nunca foram para frente, perdemos pessoas queridas, acolhemos novos amigos, ficamos sem chão, encontramos uma mão que nos puxasse de volta, dividimos momentos bons e ruins, superamos obstáculos, enfim, aqui fomos muito felizes. E esperamos que todas as gerações de meninas que dividam esse quarto daqui pra frente, possam passar por tudo que passamos e tenham uma à outra para se apoiar e chegar ao fim dos sete anos de estudo com a certeza de que fizeram amizades para a vida inteira. Porque nós fizemos.
Boa sorte.
Evie Stanislav, Milla Kovac, Vina Durigan, Annia Ivanovich e Nina Olenova. As meninas da Avalon.”
Vina terminou de escrever e assinamos nossos nomes, arrastando o móvel de volta para o lugar. Ficamos de pé e enfeitiçamos nossas malas e gaiolas para descerem sozinhas, enquanto olhávamos uma última vez para aquele cantinho que nos proporcionou tantos momentos inesquecíveis. Não dava mais para enrolar, era a hora de deixar as lembranças para trás e seguir em frente. Nina sacudiu a varinha fechando as cortinas e nos abraçamos, saindo juntas do quarto enquanto eu fechava a porta com o pé, sem olhar mais para trás.
The End.