Algumas memórias de Ricard Dragash
‘Ok, Geórgia, desculpe. Isso não está dando certo. Acho que seria melhor se eu desistisse de fazer essa peça. Não levo o menor jeito para teatro, músicas... danças... Eu tentei e você me ajudou muito também.’ - me sentei na beirada do palco encarando as cadeiras vazias do teatro do vilarejo. – ‘Pelo menos Miyako e o restante dos meninos não vão poder dizer que faço questão de morrer tímido. Mas não se preocupe, está tudo bem.’
Mentira. Eu estava derrotado. Depois de muita insistência de Miyako – e o apoio irritante de Chris e Micah, principalmente - eu decidi que talvez entrar para as aulas de teatro não seria tão má idéia assim para me fazer um pouco menos retraído. Os primeiros meses foram ótimos e as aulas realmente estavam conseguindo seus objetivos iniciais. Geórgia também parecia ter decidido que ter um calouro tão bem disposto a se soltar nos palcos era uma oportunidade muito rara para deixar e escapar e, desde o começo, era como minha monitora voluntária das aulas, e não poderia negar que nos divertimos muito... Diversão que acabou com nosso retorno ao castelo para o segundo semestre e todos os problemas que saíram de dentro das malas.
‘Ok, já acabou com as abobrinhas? Antes de tudo: não se desiste de uma peça de teatro com tanta facilidade, como se estivesse desistindo de usar o casaco ao ver que está fazendo sol. É um compromisso sério, principalmente com você mesmo. Não pode simplesmente abandonar o posto para um substituto, como se fosse uma vaga de emprego. Você passou por seleções para conseguir esse papel, mereceu ganhar esse papel. Ninguém pode fazê-lo tão bem quanto você. Entende o que digo?’ – É claro que entendia que se desistisse agora, decepcionaria muitas pessoas que estavam contando comigo, mas ainda não via como iria conseguir continuar e, sem saber o que responder, fiquei calado. – ‘Seu argumento de que não tem jeito para isso é completamente sem concordância com o desenvolvimento óbvio que eu e o restante da turma acompanhamos a cada aula que passa... Além do mais, ninguém aqui tem voz de rouxinol e corpo elástico para dançar como os profissionais da versão original! Nós somos amadores, Ricard! Não temos que nos preocupar com as performances musicais perfeitas. Agora... levanta já daí. Você não vai sair dessa peça, não seja ridículo.’ - Ela disse impaciente e autoritária, se aproximando de mim e estendendo o braço para me ajudar a ficar de pé.
Fitei sua expressão por um minuto e percebi que seria inútil discutir. Estava decidida. Balançando a cabeça e me dando por vencido, agarrei sua mão e me forcei para cima novamente. Percebi que era só um pouco mais alto que ela quando nossos olhos se encararam incrivelmente próximos por um breve segundo, antes que ela desviasse o contato e soltasse nossas mãos, pigarreando.
‘Novamente, você não está se lembrando das regras fundamentais do teatro. Vamos repassá-las. Regra número um?’ - ela andava ao meu redor, rígida e profissional. Balancei a cabeça um pouco transtornado e tentei me concentrar.
‘A platéia é sua amiga. Você deve se soltar e se mostrar a ela o tempo todo. Nunca se esconder, nunca virar as costas, nunca se contrair.’ - Repeti mecanicamente e ela sorriu satisfeita, parando novamente na minha frente.
‘Ótima memória e melhor ainda teoria. Você entende? A platéia é sua amiga, Ricard! Você não precisa se esconder dela!’
‘Não é como se eu pudesse controlar!’ – respondi em tom defensivo, mas ela não me deu brechas para continuar. Suas mãos puxaram meus ombros para cima e empurraram minha barriga para trás. Depois levantavam meu rosto de maneira soberana.
‘Regra número dois, como você deve bem lembrar, é manter sempre a postura ereta e firme. Você é quem o texto quer que você seja. Não há espaços para crises de identidade e muito menos para insegurança. A postura diz tudo. Ela marca toda a presença de palco e... ah, droga!!! Mira vai nos matar!’
Ela interrompeu abruptamente o monólogo sobre as regras, exaltada. Acompanhei seu olhar até o relógio na parede e entendi o porquê: estávamos atrasados para a aula de Literatura Mágica, o que ultimamente em Durmstrang soava como “vocês estavam armando contra o Ministério”. Geórgia limpou todo o palco com um aceno de varinha e jogou sua mochila nas costas tão rápido que, quando dei por mim, estava sendo puxado por sua mão e correndo desabalado pelo túnel de volta ao castelo e dele, pelos corredores, derrapando na porta da sala de aula alguns minutos depois, sem fôlego.
A turma toda estava afobada e pareceu nem notar nossa entrada incomum, enquanto cortávamos caminho por todos até nos aproximarmos de onde nossos amigos estavam sentados; todos igualmente alheios à nossa chegada. Enquanto Geórgia se sentava e começava a abrir os livros sobre a carteira, eu tentava, inutilmente, descobrir o assunto de toda aquela conversa. Porém, antes mesmo que tivesse conseguido algum resultado satisfatório, Mira parou de frente a nós dois, nos encarando desconfiada.
‘Quase vinte minutos atrasados. Onde estavam?’
Involuntariamente, virei um pouco o rosto para Geórgia, tentando pensar rápido em alguma desculpa plausível. Nada parecia convincente. Geórgia porém abriu um meio sorriso para a professora e, quando falou, usava seu tom de voz mais formal, calmo e sincero, descartando qualquer dúvida.
‘Desculpe, professora. Nos atrasamos e não vai acontecer novamente. Estávamos vindo, mas fomos abordados por um dos trogloditas do Ministério que só nos liberou depois de um extenso interrogatório sobre as repúblicas, os professores e também, sobre o jornal.’
Mira curvou a boca em um risco fino e pálido de descontentamento. Embora tivesse que se portar profissionalmente, era evidente que ela estava chegando ao seu limite de paciência com a intervenção do Ministério em todos os aspectos de Durmstrang, principalmente, em seu jornal. Geórgia tinha acertado em cheio o ponto fraco.
‘Bem, eles cobram responsabilidade mas prendem os alunos nas horas de suas aulas? Oras, francamente!’ – resmungou para si mesma com raiva ao mesmo tempo em que dois funcionários do Ministério entravam na sala observando a todos nós com desconfiança. – ‘Bem, tudo bem então. Tentem escolher um caminho livre de obstáculos da próxima vez. Vocês dois vão formar uma dupla para o projeto, tudo bem? Aqui está o objeto de estudos. Os colegas de vocês explicarão melhor’.
Ela pousou sobre a mesa uma caixa grande e saiu, indo de encontro aos dois homens. Geórgia ainda sorria triunfante enquanto abria a caixa, mas sua expressão se tornou do mais puro choque um segundo depois, assim como a minha, quando vimos o que era nosso “objeto”.
Dentro da caixa havia um bebê que dormia profundamente, aninhado em um emaranhado de mantas e cobertores. Sua pele era negra e suas mãos perfeitas e pequenas se sobrepunham por baixo de pequenas luvas de tricô. Transtornado, encarava o bebê como se esperasse que ele acordasse e explicasse o que estava acontecendo. Olhei ao redor e me dei conta de que não era o único que estava perdido por ali enquanto encarava a própria caixa.
‘Tentem ler a carta que está junto do boneco. Vai ajudar vocês a montarem sua narração... Ah, e não se esqueçam de batizar o filho, hein?’ – Miyako disse com a voz baixa atrás de nós e sorriu, dando uma piscadinha. Ao lado dela, Griffon também sorria e, aparentemente, contava histórias sobre dragões e espadas para um boneco bebê de pele bem clara e olhos abertos, atentos a ele.
Como eu e Geórgia olhávamos a tudo ainda muito transtornados para perguntar alguma coisa, Miyako se levantou impaciente e se sentou ao nosso lado, começando a explicar todo o projeto e tudo o que tínhamos de fazer. Quando terminou, encarei-a abobalhado.
‘Nós vamos ter que cuidar de bebês? Eles perderam a sanidade!’ – disparei assustado enquanto fazia um sinal com a cabeça na direção da professora Mira e dos dois funcionários do Ministério, que conversavam entre si com as cabeças juntas.
‘Não são bebês, Ricard. São bonecos. E ah, agora que entendi tudo... até que não acho tão má idéia assim... ’ – Geórgia disse abrindo um meio sorriso enquanto puxava o boneco de nossa caixa para seus braços, acomodando-o confortavelmente. Ele se mexeu lentamente e abriu os olhos, fitando nossos rostos. – ‘Olá, bebê. Eu sou a mamãe, Geórgia. E esse é o papai, Ricard’. – ela falou com uma voz fina e meiga que fez meu queixo despencar alguns centímetros.
Ao meu lado, Miyako soltou uma espécie de tosse para abafar a risada e se levantou voltando ao seu lugar ao lado de Griffon (e do bebê deles, já bastante agitado, balançando os braços enquanto ouvia o desfecho da história sangrenta). Balancei a cabeça para tentar organizar os pensamentos e peguei um pergaminho dentro da caixa, abrindo-o e lendo-o em voz suficientemente alta para que Geórgia escutasse também.
“Vocês são um casal de classe média baixa e moradores do subúrbio de Londres. Impossibilitados de terem filhos próprios, adotam um bebê negro. Apesar de todas as dificuldades e preconceitos, vão lutar juntos para dar-lhe a melhor educação e todo o amor que sentem por ele.” – terminei de ler e olhei para Geórgia que brincava distraída com a mãozinha do boneco, parecendo encantada. – ‘Nos deram o tema mais polêmico. É o único boneco negro da turma. ’ – disse enquanto reparava ao meu redor os outros “bebês” e casais. Lavínia e Victor pareciam enfrentar dificuldades sérias para se entenderem em alguma questão ali perto, pois estavam discutindo e assustando o boneco deles, que se balançava ameaçadoramente nos braços de Lavínia cada vez que ela se exaltava.
‘É. Martin é único. ’ – ela respondeu com a mesma voz meiga de antes e voltei a me assustar com isso.
‘Martin?’
‘Sim. Acho que devemos chamar de Martin, para lembrar Martin Luther King. Ele tem cara de líder, não acha? Nesse ponto, sinto muito, mas ele me puxou. ’
‘Sinceramente? Ainda estou assustado demais para achar qualquer coisa. Tudo isso para nos mostrar o que é, verdadeiramente, a gravidez na adolescência? Não poderiam ter nos dado um pelúcio, ou qualquer outro animal, para cuidarmos?’ – respondi mal humorado e Geórgia sorriu, me encarando.
‘Você está estressado. Relaxa. Nós vamos nos sair bem. Martin me parece ser um bebê fácil de lidar... Ande, venha cá, o segure um pouco. ’ – ela estendeu um pouco o boneco na minha direção, que permaneci relutante. Mas Geórgia insistiu já começando a ficar impaciente e acabei cedendo. Martin se movimentou um pouco nas mantas para se aconchegar nos novos braços, mas logo me encarava com atenção e não pude deixar de sorrir. – ‘Ele é uma gracinha, não é?’ – ela perguntou ali do lado e não precisei concordar.
Enquanto nos organizávamos nos horários para cuidarmos de Martin, percebi que Geórgia tinha razão: até que não tinha sido tão má idéia assim. Poderíamos até nos divertir novamente com isso...
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Cuidar de bebês deixou todos os alunos do 7º ano com olheiras ainda mais fundas e menos tempo para qualquer tipo de lazer. No entanto, eu não poderia negar o fato de que para mim e Geórgia, tinha sido uma experiência engraçada. Martin era realmente um bebê muito tranqüilo e não via problemas em dormir grande parte das noites, mas, é claro, cobrava suas condições... Alimentá-lo de três em três horas e “brincar de esconder” – tapando o rosto com as mãos e depois tirá-las de supetão, de modo que o surpreendesse – eram apenas duas delas.
O dia de entrega do relatório do projeto e, conseqüentemente, da despedida dos bonecos, foi mais triste do que poderia ter imaginado. Geórgia parecia contrariada ao “apagar” Martin com um feitiço e recolocá-lo na caixa, em cima da mesa de Mira.
‘Nós fizemos um bom trabalho. Se realmente existisse, Martin terminaria como Ministro da Magia... No mínimo, editor-chefe de algum jornal clandestino de forças revolucionárias na escola, ou líder do grêmio acadêmico’ – tentei consolá-la enquanto andávamos de volta às Repúblicas. Deu certo. Ela sorriu sincera para mim.
‘Obrigada’
‘Não por isso’
‘Não, não por isso mesmo. Por ter paciência comigo. Eu admito que tenha um gênio difícil na maior parte do tempo e, definitivamente, não gosto de ser contrariada... Eu sei de tudo isso. Então... obrigada por estar me aturando por tanto tempo, ultimamente’ – ela continuava me olhando e sorrindo e quando chegamos à porta da Avalon, me virei para ela um tanto desconcertado.
‘A convivência comigo está te deixando muito sensível. Pensei que inseguranças eram o meu forte, não o seu. Você não tem que agradecer, Geórgia. Sério. Gosto do seu “gênio”. Me diverte. E você está me ajudando muito... com o teatro e o Martin. Não foi como uma obrigação maçante como pareceu que seria. Foi legal. Pra ser sincero, nem vejo o tempo passar quando estou com você...’ – admiti, me surpreendendo com minhas próprias palavras enquanto elas escapavam sem dificuldades. Abaixei os olhos, envergonhado, mas ela riu.
‘Também não vejo. Acho que esse seu jeito meio tímido, meio escrachado, totalmente inseguro – ela virou os olhos propositalmente e ri - me inspira a não ser tão impaciente...’
Nos encaramos alguns pares de minutos e quando o silêncio começava a ficar constrangedor, ela pigarreou, se sobressaltando.
‘Bem, acho melhor você voltar para a Spartacus. Faltam poucos minutos para o toque de recolher’
‘Hum, é. Certo. Então... boa noite’
‘Boa noite’
Me adiantei para dar-lhe um beijo no rosto e ela pareceu um tanto rígida e transtornada quando me afastei novamente. Assustado com minhas reações naquela noite, virei as costas e comecei a andar depressa em direção contrária, mas ela me chamou quando ainda não estava muito distante.
‘Não vou para casa esse final de semana então, estive pensando... podemos ensaiar teatro amanhã, se você não tiver outros planos...’
‘Não! Não tenho planos. Seria ótimo...’ – respondi um tanto sobressaltado e ela sorriu. – ‘Amanhã eu te procuro e podemos ir juntos. Tudo bem?’
‘Claro. Combinado. Até amanhã, então.’
Recomecei a caminhada, agora um pouco mais devagar, enquanto um sorriso se formava no meu rosto involuntariamente. Ainda não entendia bem o porquê, mas já estava ansiando pelo momento de passar mais algumas horas na companhia de Geórgia Yelchin.