[Memórias de Ricard Dragash]
Após chegar de Paris com Gabriel, Ty e Wes, eu só pensava em cair na cama e dormir várias horas seguidas mas, mal tinha pisado em Durmstrang, fui barrado por uma Geórgia bastante carrancuda, na porta da Spartacus.
- Você não me disse que ia para Paris. – ela acusou e a encarei sem entender.
- Eu não sabia que iria. Decidimos de última hora. Aconteceu alguma coisa? Porque está aqui?
Ao perceber meu assombro na voz por causa de toda aquela situação peculiar, ela relaxou, abaixando os ombros e aliviando o brilho de irritação dos olhos.
- Não. Não é nada demais. Só vim te trazer isso. – ela estendeu um livro de capa vermelha e lustrosa. – É aquele livro sobre musicais que ia te emprestar...
- Ah! Ok. Obrigado. – recebi o livro e esbocei um meio sorriso. Ela me encarava de maneira distante, como se estivesse me vendo, mas não enxergando. Alguns segundos depois, balançou um pouco a cabeça e seus olhos me focalizaram, sua expressão muito séria. Deu alguns passos na minha direção e agora estávamos bem perto. Eu não me mexi. Esperei ela me dizer o que estava acontecendo.
- Fique parado, está bem? Por favor.
- O que está acontecendo? - ela continuava a se aproximar e senti minhas mãos ficarem geladas e imóveis quando ela as entrelaçou com as dela. Eu já podia contar os riscos dos seus olhos.
- Só quero tentar uma coisa. - ela sussurrou a poucos centímetros de mim. - Tudo bem?
Como continuava imóvel e sem resposta, ela deu um último passo pra frente e colou seus lábios nos meus. Nossos olhos se encontraram nesse instante e ela parecia, agora, tão assustada quanto eu. Por uns segundos, continuamos assim: lábios colados, olhares assustados. Estávamos nos beijando – se é que “aquilo” poderia ser considerado como um beijo! Antes que chegasse a alguma conclusão, porém, ela se afastou. Não o suficiente para não continuarmos nos encarando. Mas agora tudo estava diferente. Apesar de demonstrarmos espanto com o que tinha acontecido, parecia certo...
Decidi, por nós dois, que não precisava estender demais aquele momento que já estava se tornando maçante. Medindo cada movimento, estiquei meu braço em direção ao seu rosto e o segurei de leve, sorrindo. Ela sorriu também e pareceu aliviada. Adiantou-se novamente, jogando os dois braços ao redor do meu pescoço e colando novamente nossos lábios. Envolvi sua cintura, puxando-a para mais perto, e correspondi ao beijo.
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- Você ficou assustado. Eu quase sai correndo quando você me olhou. – Geórgia comentou, a cabeça encostada no meu ombro.
- Sério? Porque será? – perguntei sarcástico. Ela se levantou, sentando reta.
- Eu queria te pedir um favor... Não me entenda mal...
- Pedir, claro. Se eu puder atender...
- Será que podemos esconder isso dos outros, por enquanto? Só até tudo ficar mais resolvido e calmo... entre nós... e no castelo também. – ela se justificou depressa e depois me olhou
- Por quê?
- Porque ia te pedir a mesma coisa. Não precisamos contar para ninguém por enquanto. Até termos certeza. Até tudo se acalmar. – repeti enfaticamente e ela concordou sorrindo e encostando a cabeça no meu ombro novamente.
- Vai ser legal quebrar mais um protocolo social.
- Vai. Quer dizer, já está sendo. – rimos.
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[Memórias de Victor Neitchez]
Feriado de Páscoa. Abril de 2000.
- Eu falei sério quando disse que não vejo problema em vocês irem passar a Páscoa lá. – insisti para Ricard e Vina, que estavam sentados na cama dele no nosso dormitório da Spartacus.
Ricard se escondia atrás de um livro de nome “Os melhores musicais dos últimos anos” e parecia nem estar ouvindo o que eu dizia, de tão vincada que sua testa estava acima da capa vermelha. Lavínia olhava dele (com desgosto e impaciência) para mim (abrindo um sorriso sempre que me escolhia como foco), e me observava arrumar algumas roupas dentro da mochila. Ao lado dela, a pasta de “Teodoro Schneider” e a foto de minha mãe, adolescente.
- E nós falamos sério quando repetimos pela quadragésima vez que preferimos ficar. – Ricard disse entediado sem alterar sua posição. Lavínia se mexeu desconfortável e virou-se zangada para ele.
- Será que dá para largar esse maldito livro por um minuto? Agora só quer saber disso e musicais, teatro, dança... Você está um chato! Passar tanto tempo com Geórgia não anda te fazendo bem. – ela disse um pouco exaltada e prendi a respiração esperando a reação de Ricard, sem necessidade. Tão calmo e entediado como antes, ele fechou o livro com suavidade e depositou-o sobre seu colo, encarando Lavínia serenamente, um sorriso falsamente meigo estampado em seu rosto. Ela, por sua vez, cruzou os braços e fechou a cara, mas sem tirar os olhos dele também. O clima de tensão era quase palpável no ar. Pigarreei.
- Mamãe ficaria feliz em tê-los lá, vocês sabem. Ela disse que vai experimentar uma nova receita de ovos de Páscoa esse ano... – a questão agora não era tentar convencê-los de novo a irem para casa comigo e sim, fazer com que desviassem os olhos um do outro antes que se engalfinhassem em uma briga. Deu certo. Um pouco mais calma, Lavínia relaxou os braços novamente e voltou seus olhos para mim, reabrindo o sorriso (embora parecesse um pouco desconfortável agora, pois podia sentir os olhos “serenos” de Ricard ainda encarando-a com atenção).
- É um assunto de família, Vi. Não nos sentiríamos à vontade se estivéssemos lá, por mais que você repita que “eles também são nossa família” e blah blah blah. Poupe-se. – Vina me cortou com a boca aberta para falar. Tornei a fechá-la, indignado, e ela riu. – Nós vamos ficar aqui, te esperando.
Fechei o zíper da mochila e joguei-a nas costas. Não muito longe dali, o trem começou a soltar baforadas de vapor. Quando peguei a pasta do meu avô na cama, hesitei, apreensivo, me lembrando o verdadeiro motivo de estar indo para casa. Eles – que já pareciam ter esquecido o “desentendimento” de alguns minutos antes – compartilhavam da mesma ansiedade. Podia sentir isso pela maneira com que passaram a me encarar.
- Desejem-me sorte. Vou precisar. Pela primeira vez, em dezoito anos de vida, a reação da minha mãe pode ser totalmente imprevisível... Mas eu preciso de respostas e só ela pode me dar. – eles concordaram com a cabeça, sérios. Vina saltou da cama envolvendo os dois braços ao meu redor e Ricard também se levantou, instantaneamente.
- Não vou me despedir como se você estivesse indo para a guerra. Não vamos barbarizar. É a sua família, sua casa, sua mãe. Não interessa o passado dela e nem nada disso... Ela continua sendo a mesma. Não vai “surtar” com você. – ele disse com um tom irônico e ri. Parou na porta. – Você ainda está me devendo um ovo de Páscoa com a nova receita. Não tente fugir das suas obrigações porque não vou aceitar desculpas se não trouxer. – levantou a sobrancelha estrategicamente.
- Não. Nem estava pensando nessa possibilidade. – respondi e rimos. Saiu do quarto em seguida e Vina bufou.
- Ele está tão diferente esse ano... Tão... “atrevido”. – ela disse entre dentes, ainda abraçada a mim e olhando a porta, onde Ricard tinha sumido segundos antes. Coloquei a mão sob seu queixo, levantando seu rosto para me olhar.
- Você prometeu, Vina. Deixa Ricard viver a vida dele,
Vina nunca concordaria com isso, mas ela estava muito mais diferente do que Ricard nos últimos meses. Mais paciente, mais carinhosa, e muito mais dependente de companhia. As amigas nunca a deixavam sozinha, mas, quando não estava com elas, estava comigo. O tempo todo. E não brigávamos mais, por coisa alguma. Não sei se o que estava causando tudo aquilo com ela eram as diversas situações tensas no castelo, ou talvez uma nostalgia antecipada pré-formatura; se estava apenas preocupada com os NIEM’s e o futuro, ou qualquer outro motivo que eu nunca seria capaz de entender (dos bilhões que mulheres costumam ter), mas o fato é que as peças estavam invertidas, pois agora quem mediava entre dois lados era eu e não Ricard (como sempre tinha sido), e ele tinha razão: era muito mais difícil do que parecia.
- Vou sentir saudades. Ficar entediada. – ela assumiu com a voz abafada e ri, dando um beijo em sua testa.
- É só uma semana. Aproveite as férias de mim e quando eu voltar recuperaremos o tempo perdido.
- Vou cobrar. – ela sorriu se estendendo um pouco sobre os pés para me dar um beijo lento. Quando nos afastamos, ela me olhava um pouco tensa e ansiosa. – Tente não se exaltar tanto também, ok? Deve ser difícil para Mag falar dessa história, então, não a pressione muito. Ela tem o direito de esconder, se quiser. Não acho que vá “surtar” e nem nada disso, mas... Bem, é a vida dela. Deixe-a contar a você somente aquilo que se sentir à vontade.
- Eu sei. Não vou pressioná-la. Mas agora que eu sei de quase tudo... realmente seria bom se ela respondesse algumas últimas perguntas. Não se preocupe. Nós vamos ficar bem. – ela concordou e a beijei novamente, levantando-a alguns centímetros do chão. O trem soltou novas baforadas. – Agora preciso ir ou me deixam para trás. Uma semana, ok?
- Ok. Vá logo antes que isso comece a ficar dramático demais. Pela primeira vez em vários meses, vou ter de concordar com o Ricard: você não está indo para uma guerra, afinal. – concordei rindo e lhe dei um último beijo apressado.
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A casa estava vazia quando cheguei e presumi que todos estivessem trabalhando. Como não tinha confirmado com ninguém que iria, fiquei satisfeito em perceber que ainda tinha algumas horas até que mamãe voltasse da livraria e até que a casa ficasse cheia, como o habitual.
Abri a pasta sobre a cama e espalhei os diversos documentos sobre ela, analisando cada um deles novamente (nos últimos dias eles tinham se tornado um tipo de obsessão e eu não me cansava de lê-los e relê-los como se esperasse que, em algum momento, todas as peças distorcidas se encaixassem em um perfeito quebra-cabeça). Mamãe nunca falara de sua família conosco e sempre evitava o assunto e agora eu podia entender o porquê (pelo menos a essência), mas enquanto olhava para sua foto de quando tinha a minha idade, não conseguia pensar em nenhum bom motivo para deixar tudo aquilo como sempre esteve: enterrado. Eu precisava saber por que ela saiu de casa, porque meu avô quis matar meu pai e, principalmente, qual era a relação de tudo aquilo com o pai de Evie e a avó de Micah.
“Me desculpe mãe, mas você é a única que pode me responder tudo isso.” – sussurrei defensivamente para sua foto, mas ela abriu o costumeiro sorriso despreocupado para mim.