Sunday, September 26, 2010

– P R E F Á C I O –

Drammen, Noruega.
[Outubro de 2004]

- Está tudo certo. Nós podemos ir embora daqui e nunca mais vão nos encontrar.

A mulher, que era conhecida nas redondezas como “Madame Castoriadis”, sussurrou convincente para Charles Talemoe – que ainda parecia manter muitas ressalvas quanto ao plano de fuga.

- Não sei... Você poderia ao menos mudar o seu nome comercial, como eu fiz com o meu barco. Aliás, eu mudei muita coisa do antigo “Penélope”. Phoebe não vai conseguir nos encontrar se seu melhor palpite for ele. Mas o seu nome...
- Você não entende. Não é como mudar o nome de um barco, Charles. “Castoriadis” é o meu nome desde que me formei em magia e comecei a trabalhar como astróloga. Eu não me encontraria em outro nome. – ela disse com um leve tom de desespero na voz. – Mas você não precisa se preocupar com nada. Heine logo vai entender que nunca conseguiria encontrar, sozinho, o paradeiro de dois bruxos formados. E Phoebe nem sabe sobre nós... Você pode simplesmente dizer que vai navegar, e nunca mais volta. Ela vai te dar por morto. Logo eles nos esquecem. Acredite em mim, o plano é bom.

Charles raciocinava muito rápido. Sua cabeça formava em velocidades incríveis vários flashes de possíveis desenlaces de toda a trama, para ter certeza de que nada estava lhe escapando. Emily, entretanto, interrompeu seus pensamentos quando se aproximou dele e colou suas testas, decidida a encerrar o assunto.

- Vamos meu amor. Pare de pensar no que pode dar errado. Vamos embora daqui. Eu não agüento mais aquela casa. – ela disse em sussurros, enquanto o encarava fixamente e passeava os dedos de suas mãos pelo rosto e pescoço dele, que ia amolecendo gradativamente.
- Eu também não agüento mais “ela”. Está me deixando louco toda sua obsessão. E não agüento mais o trabalho no Ministério. Não agüento mais minha vida aqui. Só tenho pena de Penélope... Eu queria poder levar minha filha conosco. Queria poder “salvá-la” também. – ele disse deprimido.
- Você acha que também não está me matando a idéia de deixar meus filhos com “ele”? Mas o que nós poderíamos oferecer para eles, Charles? Nós nem temos um destino fixo ainda. Pelo menos com “eles” os futuros dos nossos filhos estão garantidos... E quem sabe ambos não se transformem quando formos embora? Quem sabe não se dediquem totalmente às crianças, e elas sejam felizes – mesmo crescendo longe de nós? Mas é um risco que teremos de correr se quisermos fazer algo por nós mesmos. Para sermos felizes.

Ambos se encararam em silêncio por um longo tempo, até Charles fechar os olhos e se render.

- Você está certa. Nós temos que fazer isso por nós. Nós temos que ir embora daqui o mais rápido possível. – abriu os olhos, decidido, e ela sorriu.
- Quando?
- Amanhã. Vamos sumir para longe daqui, amanhã.
- E nunca mais vão nos encontrar. – ela completou antes de beijá-lo intensamente.

ººººº


Instituto Durmstrang.
[Março de 2010]

- Mandou me chamar, professor? – Penélope entrou na sala do diretor um tanto receosa. Levou um susto quando um elfo doméstico da escola interrompeu a aula de Feitiços pedindo que ela o acompanhasse. Igor Ivanovich confirmou com a cabeça, em um ar sério, e dispensou o elfo.
- Sente-se. – ele disse com calma, apontando a cadeira na sua frente e ela se sentou ainda mais nervosa.
- Aconteceu alguma coisa?
- Ainda não... Mas as notícias não são boas, e você vai precisar ficar calma. – como a menina parecia assustada o suficiente com toda a situação, ele decidiu não prolongar mais o assunto. – Sua mãe está muito doente. Deu entrada ontem no St. Alborghetti, mas os curandeiros não estão criando muitas expectativas... E ela está chamando por você. Quer te ver o mais rápido possível.

Penélope puxou o ar com força e ficou tonta. De repente a sala do diretor foi ficando fora de foco e, se ela não estivesse sentada, teria certeza de estar caindo. Quando sua cabeça voltou ao eixo normal, Igor Ivanovich estava agachado em frente a ela e a segurava pelos ombros.

- Você quer ir vê-la? – ele perguntou gentilmente e ela sentiu a boca secar.
- Sim.
- Vou providenciar uma chave de portal para você, tudo bem? Vá até sua república e prepare uma mochila para alguns dias... Depois volte para cá. Vou te acompanhar até o hospital.

Ela assentiu com a cabeça, ainda se sentindo muito fraca pra dizer qualquer outra coisa, e saiu correndo da sala. Atena estava deserta àquela hora da manhã, já que todas suas outras moradoras estavam em aula. Dez minutos depois, Penélope já estava correndo novamente de volta à sala do diretor, com uma mochila improvisada nas costas. Sua mãe precisava dela.

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Penélope se assustou quando entrou na enfermaria onde sua mãe estava internada e viu seu estado. Desde o Natal a mãe tinha perdido muito peso e tinha profundas olheiras sob os olhos.

- Mãe?! – Penélope chamou baixo em uma espécie de sussurro deprimente. Segurou a mão fria da mãe, que não se alterou.
- Penélope... Você veio. – Phoebe respondeu devagar, ainda com os olhos fechados e uma tentativa frustrada de sorrir. Penélope sentiu algumas lágrimas escorrerem por seu rosto, mas manteve as duas mãos agarradas na mãe.
- O que aconteceu com você?
- Eu...não...consigo...mais. – Phoebe abriu os olhos de repente e encarou a filha com o que parecia ser o último vestígio de vitalidade que ainda possuía. – Prometa que não vai desistir de encontrar seu pai.
- Você não vai morrer mãe. – a menina respondeu desesperada, e tentando parecer convincente, mas sua voz falhou.
- Prometa. Por favor. Eu não agüento mais. – ela apertou o braço da menina, que se assustou.
- Prometo. Eu vou encontrar meu pai. – Penélope disse tentando parecer firme, o que parece ter sido o suficiente pra sua mãe (que afrouxou o aperto de seu braço e fechou novamente os olhos, cansada). – Mãe...

Mas já era tarde demais. Antes que uma das duas pudesse dizer qualquer outra coisa, Penélope sentiu a mão de sua mãe amolecer definitivamente entre suas mãos e ela soube que estava sozinha no mundo.

ººººº

Berna, Suíça.
[Agosto de 2012]

Penélope desceu sozinha do trem e olhou para o amontoado de edifícios estranhos que se empilhavam à sua frente. Depois, puxou um caderno preto – de aparência muito gasta – de dentro da bolsa e abriu-o. Tratava-se de um diário de Charles Talemoe, seu pai, do ano de 2002. (Dois anos antes de ele, misteriosamente, desaparecer - após ter saído para navegar).
Depois que sua mãe morreu e deixou Penélope com a promessa de que não desistiria de encontrar seu pai, a menina se desesperou. Não sabia nem por onde poderia começar a procurá-lo, (já que nem ao menos se lembrava dele com muita nitidez). E até mesmo pensou em deixar para pagar as conseqüências de sua promessa não cumprida quando essas lhe chegassem, mas, acidentalmente – enquanto passava sozinha o último pedaço das férias de verão em casa (como fazia todos os anos, depois de voltar da casa dos avôs maternos, na Grécia) –, encontrou o caderno em um fundo falso do armário de seus pais, e passou a analisá-lo minuciosamente atrás de pistas que pudessem lhe ajudar em alguma coisa.
Chegou à conclusão de que seu pai fora um homem medíocre. (E ela chegou a essa conclusão em um tempo passado, pois, ao contrário de sua mãe, ela já considerava o pai como uma vítima de um naufrágio, ou qualquer coisa assim.) Em todos os seus relatos, ele parecia miserável no trabalho que tinha no Ministério da Magia; miserável no casamento com Phoebe; miserável nas diversas relações sociais às quais se via obrigado a tecer dia após dia... E só uma pessoa parecia lhe compreender. Era uma cigana de nome “Madame Castoriadis”, por quem ele descrevia ter uma relação bastante forte de amizade e confiança, e compartilhar com ela todos os seus problemas e sonhos de se ver livre de tudo.
Penélope leu e releu o caderno diversas vezes, e acabou se rendendo ao pouco que tinha. (Ela sabia que era inútil buscar pelo barco de seu pai em todos os portos do mundo, pois Phoebe já tinha feito isso várias vezes, antes de desistir.) Então, decidiu buscar por “Madame Castoriadis”. Se ela tivesse a sorte de encontrar essa cigana, poderia estar muito perto de descobrir o verdadeiro destino de Charles...
E, por algum tempo, ela se sentiu com muita sorte. Ao contrário do que pensou, encontrar uma cigana cartomante que se utilizasse deste nome, foi muito fácil. Havia um registro disponível no Ministério da Magia, e uma única com esse nome – que trabalhava na capital da Suíça. E foi isso que levou a menina até Berna naquele verão...
De dentro do diário ela tirou um mapa da cidade e abriu-o para verificar sua posição. Um ponto vermelho marcado no mapa – a algumas quadras de onde ela se encontrava – marcava o ponto onde a cigana deveria estar trabalhando. Penélope começou a andar pela avenida, no sentido indicado pelo mapa, e seu coração acelerou. (Ela não entendeu o motivo de estar nervosa, mas achou que deveria ser por sua mãe. Sua mãe morrera sem ter tido nenhuma pista tão boa de Charles quanto a que Penélope achava que poderia ter.)
Andou por vários minutos e entrou na rua indicada. Era uma ruela sem saída, e cercada por paredes contínuas de prédios altos e escuros. Diminuiu o ritmo enquanto passava por eles, até parar na frente de um – quase no final da rua – e o analisar. Conferiu o número na parede com o número anotado no mapa e sentiu o coração acelerar ainda mais quando viu ser o certo. Tocou a campainha do apartamento 206 e esperou. Pouco tempo depois, uma voz feminina, suave e tranqüila, chamou-a acima de sua cabeça, pela sacada.

- Quer tirar as cartas, minha querida? – perguntou a mulher sorrindo graciosamente. Penélope puxou o ar com força.
- Não... Mas quero conversar com “Madame Castoriadis” se possível. É muito importante. – ela disse com a voz um pouco esganiçada de nervoso.

A mulher avaliou-a muito bem antes de voltar a sorrir e falar.

- Ah, entendo. “Outros serviços” então. Pode subir. – disse ela dando uma piscadinha e abrindo o portão.

Penélope sentiu as pernas gritarem a cada degrau que subia. Ela não estava se sentindo bem. Alguma coisa no jeito com que aquela mulher a havia olhado. Alguma coisa não estava certa. Mas, embora Penélope ficasse repetindo isso para si mesma durante toda a subida, a menina não pensou em retroceder em nenhum instante. Estava fazendo aquilo por sua mãe. A porta do apartamento já estava entreaberta quando ela chegou, e ela respirou fundo mais uma vez antes de entrar.

- Com licença?! – disse baixo enquanto entrava na sala de estar minúscula e fazia careta com o cheiro impregnado de incenso que atingiu suas narinas.
- Fique à vontade minha querida. Qual o seu nome? – Madame Castoriadis respondeu com sua mesma voz suave atrás de Penélope, que se exaltou de susto. A mulher, porém, sorriu e conduziu a menina até um pufe de veludo da sala.
- Penélope.

Ela já esperava muitas reações diferentes da mulher, mas nem tinha lhe passado pela cabeça que já começariam a ser mostradas logo após a menina se identificar. Ao falar seu nome, a graciosa e suave mulher que sorria para Penélope sumiu e deu lugar a outra, séria e preocupada, pálida como a vela que estava acesa entre elas na mesa. O espanto durou alguns segundos antes de ela se recompor parcialmente e esboçar um novo sorriso.

- Bonito nome. Como posso te ajudar, Penélope?

Era chegada a hora.

- Eu tinha esperanças que você pudesse me ajudar a encontrar o paradeiro de meu pai, Charles Talemoe. Ele está desaparecido desde 2004. – Penélope disse tudo de uma vez e puxou novamente o diário da bolsa, abrindo-o. – Ele cita o seu nome diversas vezes. Vocês eram confidentes. Aliás, era você, não era?

Penélope estava tão ansiosa em dizer tudo que nem se preocupou em olhar para Madame Castoriadis enquanto falava. Mas, quando olhou, sentiu os pêlos de seus braços se arrepiarem na mesma hora. Ela tinha os olhos exaltados e a boca torcida, e encarava Penélope fixamente, com fúria.

- Vá embora. – a mulher se levantou de um rompante e apontou o dedo para Penélope, ameaçadoramente.
- O que? – a menina perguntou assustada e não se moveu.
- VÁ EMBORA!

Penélope se sentiu em um plano diferente da realidade e demorou a acreditar que aquilo de fato estava acontecendo. Levantou de um salto da cadeira quando a mulher se projetou para cima dela, e em passos rápidos foi saindo para a porta, mas não rápida o suficiente. Paralisou quando foi agarrada por duas mãos frias.

- Nunca mais volte aqui. Nunca mais procure por Charles Talemoe.
- Me solta. – a menina pediu em pânico, mas a mulher continuava encarando-a fixamente com uma expressão de psicopatia.
- Todos os seus amores morrerão. – sua voz era grossa e definitiva, e ela proclamou cada palavra como uma lei.

Penélope sentiu uma pontada forte na cabeça e seus olhos se encheram de lágrimas. Com toda a força que conseguiu reunir, ela puxou seu braço das mãos da cigana e saiu correndo para fora dali. Tinha sido amaldiçoada.

ººººº

Atena, Instituto Durmstrang.
[Setembro de 2014]

Penélope acordou assustada e suando. Localizou-se no dormitório da Atena, república onde morava em Durmstrang, e respirou fundo para se acalmar.
Fechou os olhos novamente e se forçou a pensar, contínuas vezes, de que tudo ficaria bem. Um dia, tudo ficaria bem.