- Um de nós devia ir com você – Robbie falava andando de um lado pro outro enquanto eu arrumava a mochila – Eu posso ir, não tenho planos pro fim de semana.
- Não preciso de babá 24h por dia – disse rindo - Eu vou ficar bem, não vai acontecer nada.
- Ah, então você também começou a ver o futuro? – disse debochado e Leo revirou os olhos.
- Robbie, pare com isso! – ela disse atirando uma almofada nele – Parvati não é demente e já provou que não é mais suicida, dê um voto de confiança e deixe-a ir pra casa sozinha.
- Obrigada! – sorri jogando a mochila nas costas e dei um beijo na bochecha dele – Se sair agora pego o trem de 17h e estarei em casa antes das 21h. Boa reunião no jornal, vejo vocês domingo.
Sai da Atena junto com as alunas que também já não tinham mais obrigações naquela sexta-feira e seguimos para a estação de trem do vilarejo. Muitos alunos de outras repúblicas já estavam lá, comprando seus bilhetes e ansiosos para chegar em suas casas. O trem sairia às 17h em ponto levando também muitos moradores da região para Sofia e me misturei a eles na hora do embarque, procurando um vagão com desconhecidos para fazer a viagem. Já conseguia manter a concentração e ao mesmo tempo conversar com alguém, mas era muito menos trabalhoso se fizesse isso em silêncio.
Sem as paradas que sempre acontecem na viagem das 21h, o trajeto até Sofia durou apenas três horas. Às 20h em ponto o trem parou na estação e as pessoas começaram a desembarcar. O motorista da minha mãe ia me buscar só meia hora mais tarde, então sai da estação sozinha. A praça da cidade estava apinhada de gente, acontecia algum tipo de festa. Não era nenhuma festa oficial, senão minha mãe teria me avisado, mas ainda assim era uma comemoração. Avistei um banco vazio próximo a estação e comecei a caminhar até lá, mas um carro passou a toda velocidade e quase me atropelou na calçada. O motorista vinha com a mão colada na buzina enquanto gritava e o barulho ensurdecedor dos gritos e vivas que acompanharam o carro tirou toda a minha concentração e aquilo foi o que bastou. Um segundo de falta de atenção e o pensamento de todas as pessoas na praça invadiram minha mente. Minha cabeça começou a girar e explodiu em dor. Passei a mão no rosto e vi que meu nariz estava sangrando. Então tudo ficou escuro.
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Uma aglomeração se formou em volta do corpo caído na calçada. Um homem em um terno preto abriu espaço entre as pessoas e tentou reanimar a menina, sem sucesso. Sua expressão era de puro pavor. Ele pedia para as pessoas abrirem espaço e a deixarem respirar, mas ninguém obedecia.
- Por favor, ela precisa respirar! – ele gesticulava para a multidão, que se aglomerava cada vez mais – Senhorita Karev? Está me ouvindo?
- Karev? – alguém falou atrás dele – É a filha da prefeita!
- Saiam da frente! – uma mulher empurrou dois garotos e agachou ao lado do homem – Sou médica.
- Ela desmaiou, eu acho. Não vi o que aconteceu! Quando cheguei para buscá-la ela estava caída no chão. Ah meu Deus, olha quanto sangue!
- Calma, ela está respirando, só está desmaiada. O sangue é porque ela bateu a cabeça no chão, mas vai sobreviver. Você tem carro? – ele assentiu – Então a carregue até ele, vamos levá-la ao hospital. Ela precisa de uma tomografia.
O homem obedeceu e pegou a garota no colo com cuidado. A mulher ia abrindo caminho entre as pessoas sem nenhuma delicadeza e eles atravessaram a praça até onde seu carro estava estacionado. Era dia de jogo do time da cidade e o transito estava uma confusão, mas chegaram ao Hospital Geral de Sofia dez minutos depois.
- Dra. Lusth? – a enfermeira que estava na recepção se espantou – Pensei que tinha ido embora. Seu plantão não acabou?
- Voltei rapidinho, você não me viu aqui – ela indicou o homem com a garota nos braços – Ela bateu a cabeça no chão e está sangrando, coloque-a num quarto e chame o Dr. Karev.
- Não é melhor chamar um interno? Parece bem simples, ela provavelmente só vai precisar de uma tomografia – a enfermeira correu para indicar o caminho ao homem, checando o pulso da menina.
- É a filha dele, acho que vai querer chamá-lo – e a enfermeira arregalou o olho e correu para o telefone.
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- Parv? – ouvi uma voz de criança me chamando – Parv? Você acordou?
Abri os olhos devagar e um par de olhos verdes me encarava muito perto. Saltei assustada e Mason pulou pro outro lado da cama, gritando. Consegui regular a respiração outra vez e forcei um sorriso que o fez se acalmar, mas ainda estava assustada. Mason era meu primo de seis anos, filho de uma das irmãs de meu pai, e ele era uma cópia fiel de Jack. Todos na minha família tinham alguma semelhança, muitos primos se pareciam, mas as semelhanças entre Mason e Jack sempre foram um pouco assustadoras. Estiquei os braços ainda sorrindo e ele se aproximou, me abraçando. Ele sempre foi meu xodó.
- Desculpe, mas você me assustou – disse beijando sua bochecha e ele beijou a minha – O que está fazendo aqui? Alias, onde eu estou?
- No hospital. Você bateu a cabeça no chão e desmaiou.
- Não me lembro disso. E o que você faz aqui?
- Mamãe e papai viajaram, foram esquiar na Suíça. Estou na sua casa até eles voltarem.
- Parvati! – mamãe entrou no quarto com o rosto pálido, mas sorriu quando viu que estava acordada – Meu Deus, que susto que nos deu!
- Como você está sentindo? – papai entrou logo depois dela e pousou a mão em minha cabeça, sorrindo também.
- Um pouco de dor de cabeça. Não lembro de ter batido a cabeça no chão, mas lembro de me sentir tonta.
- Você deve ter desmaiado e quando caiu, bateu a cabeça. Isso tem acontecido com freqüência?
- Não, nunca desmaiei na escola – não era mentira, mas também não era toda verdade.
O problema é que não podia contar a verdade a eles sem que me internassem outra vez. E tinha certeza que daquela vez eles iriam me colocar em uma camisa de força. Papai disse que não haviam encontrado nada na minha tomografia e que já podia ir para casa. Ele assinou minha alta e mamãe levou Mason e eu embora. Meu primo foi o caminho todo contando o que tinha feito desde que seus pais o deixaram com os meus e tentava ao máximo acompanhar as histórias, mas minha cabeça ainda doía muito e tudo que eu queria era deitar na minha cama e só acordar no dia seguinte.
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Dormi instantaneamente quando deitei a cabeça no meu travesseiro, a primeira noite sem ouvir o sonho alheio, algo que sempre acontecia dividindo o quarto com mais quatro meninas. Não tinha uma noite tranqüila de sono desde que havia voltado para a escola, então quando acordei na manhã seguinte estava me sentindo leve e relaxada. Mason estava mais uma vez me olhando de perto, mas não me assustei. Ele pulou pra cima da cama quando viu que tinha acordado.
- Você precisa parar de fazer isso – disse lhe dando um beijo de bom dia.
- Você saiu no jornal – e me entregou um exemplar do jornal do dia, com uma notinha pequena contando que a filha da prefeita havia desmaiado no meio da rua.
- Ah que ótimo, me reconheceram – bufei e atirei o jornal no chão.
- Tia Karen precisou sair e tio Demetri já foi pro hospital. Você me leva no parque?
- Seus seguranças precisam ir?
- Mamãe diz que não posso sair sem eles.
- Tudo bem, vamos lá. Posso fingir que não tem ninguém nos seguindo.
Levantei da cama e fui tomar banho para sair com Mason. A irmã do meu pai, tia Amélia, era uma atriz no mundo trouxa mesmo sendo bruxa. Já tinha feito vários filmes e era constantemente seguida por paparazzis, assim como seu marido e Mason. Ela tinha verdadeiro pavor de expor ele à confusão que era sua vida, então nunca o deixava sair com quem quer que fosse sem que ao menos um de seus seguranças particulares estivesse junto. Então quando finalmente fiquei pronta e saímos para o quintal, um armário estava parado do lado da porta pronto para nos acompanhar.
O parquinho que Mason gostava de brincar não era longe da minha casa. Estava cheio de crianças naquela manhã e sentei no gramado, mais afastada, enquanto ele corria pros brinquedos. Ele finalmente cansou uma hora depois e sentou do meu lado. O segurança veio atrás dele, mas se manteve distante o bastante para não ouvir o que conversássemos, mas perto o suficiente para protegê-lo se fosse preciso.
- Por que você não foi brincar comigo? Você sempre brinca no balanço.
- Se eu contar uma coisa, você guarda segredo? – ele fez que sim com a cabeça, ansioso – Ninguém pode saber.
- Não vou contar pra ninguém, eu juro.
- Eu posso ouvir o que as pessoas pensam e isso é ruim, porque eu não sei como impedir. Não posso ficar no meio de muita gente senão minha cabeça dói.
- Foi por isso que você desmaiou ontem? – fiz que sim e ele fez uma cara de sábio que me fez rir – Por que você não foge pro seu lugar especial pra não ouvir as vozes?
- Lugar especial?
- É, como quando a família fica me olhando como se eu fosse o Jack, como se quisessem que eu fosse ele – sua voz ficou triste e tive que controlar a vontade de abraçá-lo – Isso me incomoda, então eu imagino que estou em outro lugar e não escuto mais ninguém falando ou me encarando. Sempre vou pra casa do lago do vovô. Por que você não tenta?
Sorri para ele e concordei em tentar, afinal, não tinha nada a perder. A casa do lago do vovô era o lugar onde eu sempre passava boa parte das férias na infância, com todos os meus primos. Era só ele e a vovó cuidando de uma verdadeira tropa, mas eles nunca se incomodaram ou tiveram problemas. Éramos muitos e bagunceiros, mas obedientes. Não íamos lá desde a morte do vovô, há dois anos, mas só tinha lembranças boas daquela época, então quando fechei os olhos a primeira imagem que vi a velha casa.
Era uma casa simples. Ela era toda feita de madeira e tinha dois andares, com quatro quartos espalhados na parte de cima. Uma era do vovô e da vovó e os outros eram cheios de beliches, para acomodar todos os netos. No andar de baixo tinha uma mesa enorme que acomodava todos, a cozinha onde vovó fazia as coisas mais gostosas do mundo e uma lareira, que era sempre acessa de noite para aquecer a casa. Relaxei mais e vi vovó na varanda, com uma Alexis de 4 anos no colo. Olhei para o quintal e vi minha versão de 6 anos passar correndo usando um maiô, com Julie e Jack também com roupas de banho correndo comigo. Nós três gritávamos enlouquecidos e corremos para o deque, mas ninguém sabia nadar e paramos na beirada. Vovô nos alcançou e pegou os três no colo com uma braçada só, nos fazendo cócegas. Riamos tanto que meu rosto ficou molhado de lágrimas. Vovó gritou da varanda que o lanche estava pronto e os netos começaram a aparecer de todos os lados, todos correndo para dentro da casa.
Abri os olhos e a imagem sumiu, mas não ouvia mais nada. O parque estava em silêncio. Os únicos sons eram a das crianças brincando, dos balanços indo de um lado pro outro e alguns poucos carros que passavam na rua. Nenhum pensamento.
- Funcionou? – Mason me encarava curioso.
- Você é um gênio – agarrei seu rosto e beijei sua bochecha – Vamos, vou comprar o maior sorvete que tiver na cidade, você merece.
Levantamos da grama e Mason segurou minha mão enquanto atravessávamos o parquinho na direção da sorveteria da cidade. Ele escolheu o sorvete que queria e comprei um pra mim também antes de voltarmos para casa. Mamãe já tinha voltado quando chegamos e reclamou que o sorvete ia estragar o almoço, mas não parecia realmente braba. Abracei-a feliz e ela retribuiu o abraço. Lembrei-me do que Alexis tinha dito, sobre cuidar dela. Mamãe estava sempre pálida desde o acidente, mas era a primeira vez que a via sorrir de verdade.
- Katarina passou aqui para lhe visitar, mas estava na rua com Mason. Pediu para deixar um abraço, mas não vai poder voltar mais tarde, tem uma viagem marcada com o noivo – mamãe falou enquanto nos acomodávamos na mesa para o almoço.
- Quem?
- Dra. Lusth, quem socorreu você na rua e a levou direto ao seu pai. Você não a conhece? Conhece seu irmão, Oscar, estudam juntos. Sei que não se gostam muito.
- Ah, ela – fui tomada por um pânico repentino, mas consegui disfarçar – Não sabia que ela era médica e que tinha me resgatado ontem.
- Ela é uma excelente médica, trabalha com seu pai há anos. Devia ligar para ela, agradecer por ontem. Ela estava preocupada quando veio aqui.
- Sim, vou ligar.
Mamãe ficou satisfeita e mudou de assunto, passando a falar sobre planos para um passeio em família à noite, quando papai chegasse do hospital. Eu sorria e concordava com tudo que ela dizia, mas minha mente já estava longe. Por que Katarina havia voltado para me ver hoje? Se ela era uma médica tão boa quanto minha mãe diz, saberia que não aconteceu nada demais e que eu estava bem, podia ter apenas ligado, afinal, tínhamos nos conhecido há apenas duas semanas e não éramos tão próximas assim. Se ela se deu ao trabalho de vir até aqui esperando me ver, era porque desconfiava de alguma coisa. Precisava avisar Ozzy o mais rápido possível, mas algo me dizia que não íamos conseguir manter o segredo por muito mais tempo.