- Que horas são? – Parvati puxou o braço de Robbie e consultou seu relógio – Droga.
- O que foi? – ele puxou o braço de volta – O que tem de errado com 17h?
- Nada. Vejo vocês depois.
Parvati levantou da mesa sem dizer mais nada e saiu do salão principal sem sequer ter tocado no jantar. Por mais que tentasse disfarçar, estava ansiosa com a sessão de terapia sem a companhia de Ozzy. Não que ela pretendesse contar alguma coisa mais relevante ao psicólogo, mas a perspectiva de ficar uma hora sozinha com ele, sem um apoio, era preocupante.
Ozzy a alcançou antes que chegasse aos degraus da escada. Ele também estava preocupado. “Não vá contar nada que se arrependa depois”, ele lhe advertiu. Ela riu, nervosa, “Quem sabe ler mentes sou eu, me dê um pouco de crédito”. No entanto, nenhum dos dois estava convencido de que aquele dia ia terminar de maneira positiva. A caminhada até o escritório no quarto andar foi longa e silenciosa. Quando bateu a porta, ouviu a já familiar voz do Dr. Pace a mandando entrar. Recebeu-a com um sorriso alegre no rosto. “Claro, não é ele quem vai ser encurralado aqui dentro”, ela pensou ao sentar-se no sofá em sua frente, forçando um sorriso.
- Tudo bem, Parvati? Como está sendo a semana?
- As aulas estão um pouco puxadas, mas é o último ano, nada que não esperássemos.
- Ótimo. Antes de começarmos a sessão, preciso pedir que parasse de tentar penetrar minha mente – Martin Pace fitou Parvati, mas sua expressão não era zangada. Parecia estar se divertindo – Embora fique feliz em saber que é uma boa oclumente, devo alertá-la que sou um excelente legilimente. Não conseguirá ler nada.
- Desculpe. – ela disse sem graça.
- Sem problemas. Assunto esclarecido, vamos começar a sessão.
Ela o observou pegar uma pasta roxa da mesa e abrir, folheando suas páginas com atenção. Aquela pasta roxa não era um bom sinal. Além de conter anotações detalhadas sobre a vida acadêmica dos alunos, trazia péssimas recordações à Parvati. Fora por causa dela que uma cadeia de eventos catastróficos se sucedeu, terminando no acidente no último verão. Quando ele pareceu encontrar o que queria, voltou a encará-la.
- Estou com a sua ficha acadêmica nas mãos e devo dizer, estou impressionado. Já havia lido algumas coisas quando comecei a trabalhar com a turma do curso, mas dessa vez pedi a ficha completa e você tem um histórico e tanto.
- Obrigada? – ela deu de ombros e ele riu.
- Um extenso histórico de detenções, frequentemente causadas por implicar com outros alunos, mas muitas por insubordinação e desrespeito às regras, inúmeros relatos de brigas envolvendo você e Oscar... Devo acrescentar que fico até aliviado em ler que as brigas nunca chegaram ao nível físico, estava esperando pelo pior enquanto lia esse material.
- Nós não nos dávamos muito bem.
- E então tudo parou. O último relato de mau comportamento foi em junho do ano passado, pouco antes das férias. Nada depois disso, nem mesmo uma reclamação simples vinda de qualquer professor. O que mudou?
- Eu só... Sei lá, acho que percebi que era imatura e decidi mudar.
- Aqui também diz que você sofreu um acidente de carro no final de julho, onde as duas pessoas que estavam com você no carro faleceram.
- Não quero falar sobre isso, desculpe – disse na defensiva, recuando.
- Precisamos falar sobre isso, Parvati. Sabe por quê? Porque eu acho que foi isso que fez você mudar, e eu quero entender o motivo.
- Minha irmã e meu primo morreram. Isso não é motivo o suficiente pra você querer deixar de ser uma imbecil com as pessoas?
- Não, não é. Isso normalmente revolta ainda mais as pessoas, não as faz recuar. Gostaria que você me contasse o que aconteceu no dia do acidente. O que estava fazendo antes dele? Para onde estava indo quando o carro bateu?
Parvati abaixou a cabeça por um momento, incapaz de impedir que uma lágrima escorresse por seu rosto. Nunca havia conversado com ninguém sobre aquele dia, mas sabia que um dia teria que fazer isso e talvez aquela fosse a hora certa. Dr. Pace era um pessoa em quem ela sabia que podia confiar, mas se era para contar a história, precisaria começar com a confissão do roubo da pasta roxa.
Ele ouviu pacientemente ela contar tudo. Desde o dia em que roubou a pasta com a ajuda de Leonora, destruiu os documentos e foi quase expulsa, levando-a a conclusão de que Ozzy, o único a tê-las visto com a pasta, havia contado ao diretor. Contou também o que fez para vingar-se dele, mesmo sem provas de que havia sido ele o autor da denuncia, e o que aconteceu quando ele descobriu. Falar do dia do acidente, da discussão que a levou a sair de casa atordoada, foi mais difícil.
- Leve o tempo que precisar – disse lhe estendendo um copo com água – A discussão entre vocês ficou séria? – e ela assentiu, bebendo a água.
- Insultos foram ditos de ambos os lados. Ele estava fora de si, eu acabei me exaltando também e dissemos coisas que não devíamos.
- Como você se sentiu ouvindo as coisas que Oscar disse?
- Magoada. Ele estava com razão em ficar furioso e me ofender pra liberar a raiva, mas as palavras que ele disse me machucaram.
- Você se sentiria melhor se ele pedisse desculpas? – e ela assentiu novamente.
- Se nada disso tivesse acontecido, eu não teria saído de casa naquele estado e não teria batido com o carro. Se eu nunca tivesse interferido na entrevista dele com o time de Hóquei, minha irmã e meu primo ainda estariam aqui.
- Você se culpa pelo acidente? – mais uma vez ela assentiu, outra lágrima escorrendo antes que ela pudesse impedir – Tenho algo que gostaria que lesse.
Martin consultou a pasta roxa mais uma vez, mas demorou um pouco mais de tempo para encontrar o que procurava. Encontrou uma cópia de um relatório policial sobre o acidente e estendeu a ela, mas antes que pudesse ler o que ele dizia, ele se adiantou.
- Fique com essa cópia, mas quando a ler vai descobrir que o acidente não poderia ter sido evitado. Não importa quem estivesse ao volante, o carro ia se chocar.
- Como? – perguntou com a voz embargada pelo choro.
- A posição do carro na estrada e a maneira como o caminhão veio ao encontro dele só lhe dava duas opções para tentar desviar. Se jogasse o carro para a esquerda, ia capotar ao subir o barranco. Se jogasse ele pra direita, estaria o arremessando de um penhasco. Nenhuma das opções evitaria o choque, não importa se não estava atenta e não conseguiu evitar a colisão frontal. Não se culpe por algo que não poderia evitar.
Ela assentiu, ainda chorando, e levantou do sofá com a cópia do relatório na mão. Sua hora já havia acabado, mas a conversa, embora séria, fluiu tão bem que parecia ter passado apenas alguns minutos. Parvati se pegou desejando que tivesse mais um tempo com o psicólogo, mas precisava sair para dar a vez a Ozzy. Ele já estava esperando do lado de fora quando saiu e se assustou quando viu que a garota estava chorando.
- O que aconteceu? – perguntou preocupado
- Nada, está tudo bem. Ele está esperando você – ela respondeu sem estender o assunto, apertando o passo para sumir da vista dele.
Ozzy não teve tempo de dizer nada, pois a voz do psicólogo o convidou a entrar. Ele também reparou na pasta roxa em sua mão, mas diferente de Parvati, não se sentia intimidado por ela. Acomodou-se no sofá como de costume, um pouco mais desconfortável do que das outras vezes.
- Oscar Lusth... – Martin olhou da ficha para ele e sorriu – Seu histórico é muito bom. Salvo uma detenção ou outra por brigas nos jogos de Hóquei ou uma brincadeira de mau gosto, seu saldo é positivo. Aluno exemplar, notas excelentes, atleta dedicado. O único saldo negativo no histórico são os extensivos relatos de brigas entre você e Parvati.
- É, a gente não se dava muito bem até o ano passado.
- Aqui diz que as brigas começaram de uma hora pra outra a dois anos atrás, e da mesma forma acabaram – Ozzy deu de ombros, rindo – Pode me dizer o motivo?
- Nós passamos por muitas coisas nas férias, perdemos pessoas que amávamos e isso faz a gente repensar nossas escolhas.
- Então o acidente foi o motivo? Conte-me o que aconteceu naquele dia. Você e Parvati discutiram, não é?
- Você perguntou isso a ela? Por isso ela saiu chorando?
- Não estamos aqui pra falar dela. Quero ouvir o seu lado da história.
- Não gosto de lembrar daquele dia. Foi minha culpa o que aconteceu.
- Você fala da discussão? Parvati saiu de casa nervosa porque discutiram?
- Não... Olha doutor, é complicado. Não posso falar sobre isso.
- Tente descomplicar então. Não estou aqui para julgar ninguém.
- Não é questão de julgar. Você tem o poder de me colocar em uma camisa de força, não vou lhe dar material pra isso.
- O que está acontecendo, Oscar? – Martin percebeu que, o que quer que estivesse acontecendo, era mais sério do que ele julgava – Estou aqui para ajudar, mas se você não começar a ser honesto comigo, não vou poder fazer isso.
Ozzy considerou por um momento. Era loucura contar a verdade, gente demais já sabia dela e mais um poderia fazer tudo sair do controle, mas por outro lado ele sabia que podia confiar no Dr. Pace.
- Tudo que for dito aqui...
- Não sairá dessa sala. Não posso discutir o que é dito aqui com outras pessoas, é antiético.
- Certo. A história vai parecer maluca, mas não é.
- Estou ouvindo.
E ele lhe contou toda a história. Começou com a acusação falsa de Parvati sobre tê-la denunciado ao diretor e de como isso o fez perder a vaga que sempre sonhou no time de Hóquei que é fã. Contou da discussão e de como, minutos depois de Parvati ter saído de casa, encontrou o carro capotado na estrada. E então Ozzy o encarou, e começou a contar a história da sua família. Achava que ele não acreditaria, mas logo percebeu que não estava se passando por louco. Martin ouvia atentamente, assentindo sem dizer nada, como se aquela história não fosse tão surpreendente assim. Ozzy interrompeu a narração quando voltou à parte onde encontraram os corpos no local do acidente.
- Já havia ouvido falar das famílias de Imortais, mas nunca havia conhecido um.
- Não acha que sou louco?
- Não, claro que não. Não esperava que fosse ouvir isso, mas sei que está dizendo a verdade.
- Que bom, porque a história não acabou. Quando nós chegamos lá, estavam todos mortos. Todos, inclusive a Parvati. O processo de imortalizarão só funciona porque conseguimos trazer a alma de volta, mas se ela já tiver feito a travessia não funciona. Jack e Alexis não estavam mais lá, mas Parvati não foi embora.
- E vocês a trouxeram de volta? – Ozzy assentiu – Isso significa que ela também é como você? – ele assentiu novamente e Martin encostou no sofá – Uau.
- Oleg sabia como fazer, mas eu dei a idéia. Entrei em desespero, estava me sentindo culpado e precisava fazer alguma coisa.
- Por que você estava se sentindo culpado?
- Porque eu disse a ela pra bater com o carro. Quando Parvati estava saindo, disse a ela que estaria fazendo um favor se batesse com ele.
- Oscar, não é só porque desejou que algo acontecesse que a culpa é sua.
- Você não entende. Todo Imortal tem uma espécie de habilidade. A minha é ler mentes, mas posso fazer muito mais que isso. Eu consigo manipulá-las. Eu não tinha a intenção de manipulá-la, mas estava tão nervoso que posso ter feito sem querer.
Martin entregou a ele outra cópia do relatório policial, o mesmo que havia dado a Parvati. Ozzy leu com atenção, mas ele sabia pela sua expressão que ainda não estava convencido. Não importa o que digam, ele sempre carregará consigo aquela duvida. E infelizmente aquilo era algo que ninguém poderia ajudar. Para se livrar da culpa, ele teria que encontrar o caminho sozinho.
- Vamos falar sobre o motivo da briga antes do acidente. Você disse que Parvati interferiu em uma entrevista que estava esperando.
- Ela destruiu meu sonho. Jogar pelo Vancouver Cannucks era algo que eu sonhava desde criança e aquela oportunidade era única.
- Vocês já conversaram sobre isso? – ele assentiu, sem encarar o psicólogo – E você a perdoou por isso?
- Sim... Não, na verdade não. Disse a ela que estava tudo bem, que já tinha esquecido, mas era mentira.
- E por que mentiu pra ela?
- Porque não queria falar sobre isso. Foi mais fácil dizer que já estava esquecido.
- Você sabe que vão precisar conversar sobre isso, não sabe?
- Sim, eu sei, mas ainda não estou pronto para perdoá-la. Não estou com raiva nem quero me vingar, estamos nos dando bem agora, só não consigo perdoar ainda. Isso me magoou muito.
- Um passo para você encontrar uma maneira de perdoá-la é ser honesto com ela. Parvati precisa entender as conseqüências de seus atos e saber como você se sente é importante – ele abaixou a cabeça sem responder, mas acabou assentindo – Façamos assim: se você quiser conversar com ela por conta própria sobre isso, faça. Se não quiser, na próxima sessão nós três faremos isso, juntos. Vou ajudá-los se quiserem, mas fica a seu critério.
Ozzy concordou e prometeu pensar se ia conversar com ela sozinho ou esperar pela próxima sessão, mas no fundo ele sabia que não teria coragem de puxar o assunto. Tudo era mais fácil de ser dito nas sessões, então Dr. Pace teria que fazer isso por ele. Pela primeira vez ele iria para a terapia sabendo exatamente o que esperar, mas a perspectiva era ainda menos animadora.