Sunday, February 10, 2008

O domingo parecia estar se arrastando. A neve que insistia em cair, embora fraca e dando indícios de que estava em seus últimos dias, desanimava a maioria dos alunos de sair. Já passava das 14hs e eu me encontrava na mesma posição desde que acordei, há poucas horas atrás: os pés na parede, a cabeça na ponta da cama e uma almofada na barriga. As meninas não estavam também muito animadas. Cada uma ocupava sua cama e se dividiam entre ler um livro ou encarar o teto, todas em total silêncio. Clamava por uma salvação do tédio quando a porta do quarto se abriu e a cabeça de Micah apareceu na fresta. Já sorri animada, sabia que ele me tiraria do ócio.

‘Já começaram a criar teias, meninas?’ Disse rindo e todas resmungaram, mas não era possível decifrar o que. Ele se virou para mim ‘Evi, está à toa?’

‘Não, estou muito ocupada tentando calcular a velocidade do vento que passa lá fora’ Respondi sarcástica e sentei na cama ‘Claro que estou à toa, e entediada também’

‘Quer ir comigo até o vilarejo? Preciso te contar uma coisa, vamos conversando no caminho’

‘Claro, vamos sim. Só preciso de um casaco e botas’

Sai depressa da cama espantando o tédio vestindo um casaco e calçando minhas botas e logo já estávamos caminhando pela estrada que levava ao vilarejo. Micah estava esquisito, parecia um pouco assustado, e isso me preocupou. Quando já estávamos longe das repúblicas ele diminuiu o passo e começou a falar.

‘Lembra quando ficamos até tarde da redação do jornal e eu encontrei edições muito antigas com aquelas palavras-cruzadas?’

‘Sim, e lembro também que você cismou que elas soavam estranhas, por serem sempre idênticas’

‘Pois é, eu resolvi investigar elas, queria tirar a duvida, saber se era mesmo paranóia minha ou se tinha razão em suspeitar delas’

‘E chegou a alguma conclusão?’

‘Sim. Eu estava com a razão’ Ele soou orgulhoso por dizer isso e não pude evitar rir ‘Não são simples palavras-cruzadas. São enigmas, de uma sociedade secreta’

‘Como é que é?’ Deixei uma gargalhada escapar ‘Sociedade secreta? Acho que está vendo muito filme trouxa, Micah!’

‘Não estou não, elas existem! As maiores universidades trouxas americanas possuem sociedades secretas, e pessoas famosas já declararam fazer parte de algumas delas. Durmstrang tem o perfil de um lugar que abriga uma’

‘E como você chegou a essa conclusão vasculhando jogos de palavras-cruzadas de 20 anos atrás?’

‘Descobri algumas palavras neles, e sempre conseguia formar frases com elas. As frases sempre faziam sentido, e acho até que me revelaram o nome dela. Reis e Sombras’ Anunciou pomposo e depois riu ‘Ridículo, não é? Reis e Sombras... Quem se auto-intitula assim?’

‘Pessoas que não tem mais o que fazer, sem duvida’ Ri do nome, e já estava curiosa ‘E o que mais descobriu, Clark Kent? Algum membro famoso?’

‘Não descobri nome nenhum ainda, mas tem edições de alguns anos atrás que abordam a suspeita de uma sociedade secreta aqui. Eu não fui o primeiro a desconfiar. Em 1986 um redator conseguiu uma foto do que poderia ser um grupo dessa sociedade. Pessoas com capas e máscaras carregando tochas e alguns garotos com os olhos vendados. É impossível identificar qualquer um deles, mas sem duvida era parte do ritual de iniciação’

‘Você pesquisou bem!’ Estava espantada com a quantidade de informação que ele havia coletado ‘Tem alguma suspeita de membros dessa tal sociedade? O tipo de pessoas que eles admitem?’

‘Suspeito de alguns sim, mas não posso provar nada, então acho melhor não dar nome aos bois, ao menos por enquanto. Vou pesquisar mais um pouco, tentar encontrar o autor daquela foto’

‘Tem alguma coisa te incomodando nisso tudo, não é?’ Parei de caminhar quando chegamos à porta da sorveteria e ele me encarou ‘O que se esqueceu de me contar?’

‘Sabe quando você tem a sensação de estar sendo seguido, vigiado?’ Falou olhando para os lados e abaixando a voz ‘De que cada passo que você dá pelo menos dez pares de olhos acompanham?’

‘Sei, porque é assim que me sinto nas férias, em casa’ Revirei os olhos lembrança da vigilância constante que meu pai faz

‘Pois é, estou com essa sensação desde que comecei a pesquisar a sociedade’

‘Talvez esteja irritando as pessoas que fazem parte dela. Se a sociedade é secreta, não quer ser descoberta, certo? Acho que seria bom você parar, isso pode acabar mal’

‘Mas não tenho pretensão alguma de expor nada e nem ninguém, só quero descobrir a verdade’ Ele deu de ombros e abriu a porta da sorveteria para eu passar ‘E também, isso não é um filme. O que pode me acontecer se descobrir a identidade de algum membro dela?’

Minha expressão era de preocupação, mas ele estava tão seguro de que nada poderia acontecer que resolvi deixar pra lá. A sorveteria estava lotada, apesar do frio. Estava com uma novidade que eram uns iogurtes congelados e estava fazendo o maior sucesso. Encontramos um lugar menos tumultuado perto do balcão e tentamos ser atendidos, mas em vão.

'Evi, não comente isso que lhe contei com ninguém, ok?' Disse quando fechou a porta, soando preocupado outra vez 'Vamos manter somente entre nós dois, ao menos até que eu tenha certeza de alguma coisa'

'Não se preocupe, não vou contar a ninguém' Olhei para os lados e fiz uma careta ‘É impossível andar aqui, está cheio demais! Por que só aquele lado de lá anda?’

‘É a fila da prova’ Respondeu esticando o pescoço ‘Estão experimentando os sabores para decidir qual comprar. Acho que o único jeito de provamos isso é entrando naquela fila’

‘Comer de graça?’ Perguntei espantada e ele riu ‘Quem faz isso? Fica provando coisa de graça só pra não pagar?’

‘Muita gente faz, mas você não, claro. Você é certinha demais pra isso. Não suportaria ver as pessoas reclamando de você por prender a fila’ Provocou

‘Não sou certinha! Só acho isso errado, algum problema?’ Cruzei os braços o encarando e ele riu mais ainda ‘Sou perfeitamente capaz de fazer isso!’

‘Ah é?’ Debochou ‘Pois prove então! Vá até lá e prove todos os sabores de graça, ignorando as pessoas revoltadas’

Descruzei os braços me sentindo ofendida e marchei até o outro lado da sorveteria, Micah atrás de mim. Encostei-me no balcão e pedi para provar o primeiro sabor. Depois pedi mais um, e mais outro, até que já estava no 9º sabor. O atendente começava a se irritar e as pessoas na fila não paravam de protestar, mandando que eu saísse. Micah não saia do meu lado.

‘Agora eu quero o de pistache’ Falei sem encarar o atendente

‘Os iogurtes estão à venda, sabia?’ Disse irritado, enchendo o potinho de iogurte verde

‘Eu não consigo fazer isso, Micah!’ Virei aflita para ele. Estava odiando as pessoas fazendo queixa de mim

‘Não, não, eu estou orgulhoso de você!’ Disse agarrando meu braço e sorrindo ‘Você precisa se soltar mais, e essa é sua 1ª oportunidade! Você já provou 9 sabores!’

‘10, com o de pistache são 10!’ Respondi tremula quando ele me virou para o balcão outra vez. O atendente já estava com a mão estendida e cara de poucos amigos

‘Aqui está. A fila está grande e preciso atender os outros. Qual você vai levar?

‘Nenhum. Nenhum’ Micah sussurrava no meu ouvido

‘Eu não posso fazer isso! Não é certo!’ Exclamei nervosa

‘Evi, eu não achava q você chegaria ao 2º iogurte e você pediu 10! Você pode fazer isso, eu sei que pode! Você entrou aqui como um alce, e vai sair como uma cretina, idiota, odiada pela fila toda! Você é o meu orgulho!’

‘Isso mesmo, eu posso!’ Virei para o vendedor outra vez, decidida ‘Estou satisfeita!’

O atendente bufou irritado e demos de costas para ele, saindo da sorveteria. Quando paramos do lado de fora, precisei me escorar na parede para não cair. Minhas pernas tremiam. Micah ria alto e depois acabei rindo também. Não estava acostumada a ter pessoas fazendo queixa de mim, me achando uma idiota, mas tinha que admitir que a sensação era excelente. No fim das contas, Micah tinha razão: preciso me soltar mais...