Wednesday, March 26, 2008

Terça-feira à noite, treino de trancabola

‘Vamos, vamos, vamos seus molengas!’ Maddox berrava da lateral do campo de olho no cronômetro ‘Alguém pare aquele homem!’

Olhei para frente e vi que Chris O’Shea era o mais próximo de Derek, que corria abraçado com a goles e se aproximava cada vez mais do caldeirão. Mas mesmo próximo ainda estava distante. Corri mais depressa dando a volta pela lateral do campo e segundos depois estava colado nele. Com um único salto o abracei e ele foi ao chão, deixando a goles livre para Victor recuperar e marcar o ponto final da nossa equipe. Comemoramos o fim da partida contra os reservas e Derek continuou estirado no chão com a mão na costela.

‘Muito bom, Micah! Excelente! Derek, tudo bem ai?’ Derek fez sinal de positivo com a mão, mas a careta o contradizia ‘O treino de hoje teve uma melhora significativa para o da semana passada, e isso é ótimo. Sexta vamos nos concentrar na partida de sábado. Agora podem ir para o chuveiro, por hoje é só!’

O time ainda continuou no campo por um tempo conversando e segui para o vestiário na frente. Não tinha intenção de tomar banho lá se poderia fazer isso no banheiro da republica, mas tinha meios mais interessantes de ocupar meu tempo, diferente dos outros. Procurei imediatamente pelo armário de Derek e com o canivete que ganhei de Shannon o abri. Como um sonho, sua saboneteira e sua toalha estavam dando sopa logo na prateleira da frente. Puxei uma seringa da mochila e espetei no sabonete, injetando o liquido rosa dentro dele. Guardei-o com cuidado e desdobrei a toalha, espalhando purpurina nela e redobrando devagar, recolocando no mesmo lugar. Quando ia fechar a porta do armário e sair, ouvi a porta do vestiário abrir.

‘O que está fazendo?’ O’Shea entrou me olhando desconfiado ‘Esse não é seu armário’

‘E dizem que você não é inteligente... Pessoas maldosas, tsc tsc tsc’ tentei disfarçar e me afastei do armário

‘Boa defesa, a ironia. Mas sabe que uma hora o saco de piadinha esvazia, não é?’

‘Você não tem mais o que fazer não, Peter Pan? Procurar a Sininho lá fora, por exemplo?’

‘Deixa adivinhar: a vitima da vez é o namorado da Evie?’ continuou falando e me ignorando ‘Que irônico! Você provoca, desdenha, pisa, faz o que quer, e quando ela finalmente se cansa, você fica com ciúme’

‘Quem falou em ciúme, garoto? Acho que levou uma pancada forte hoje, está delirando’

‘Você não é muito bom para se defender com palavras, se sai melhor em uma defesa física’

‘Ótimo, quer levar uma porrada agora ou daqui a pouco?’

‘Já quer partir pra ignorância? Assim denuncia logo que estou com a razão’

‘Não vou discutir com você, tenho mais o que fazer, dá licença’ passei por ele com a mochila nas costas dando um esbarrão com o ombro de propósito e com força

‘Você quer que ela odeie você? Porque se é isso que quer, então parabéns! Está indo pelo caminho certo!’ ainda o ouvi berrar antes de bater a porta

Vi o resto do time entrando no corredor do vestiário e pensei em voltar para ver o resultado do sabonete colorido, mas se topasse com o O’Shea outra vez íamos sair no braço, então achei melhor não voltar. Teria outras oportunidades de ver o nosso zagueiro brilhando e de cabelo rosa. E em todo caso, Victor chegaria na republica relatando o episodio às gargalhadas. Voltei direto para a Spartacus e depois de tomar banho, sai outra vez. Não estava com a menor vontade de ficar trancado dentro de casa, tampouco de assistir a aula de Astronomia. Quando ela estava quase começando, peguei minha câmera e fiz o caminho contrario a torre, parando já perto dos portões da escola.

Queria poder sair, andar sozinho no vilarejo um pouco, mas sabia que se sequer encostasse a mão no portão, logo um guarda-caça apareceria com uma detenção. Mas mesmo assim não voltei. Sentei no gramado encostado no muro e fiquei encarando o jardim escuro, pensativo. Nos últimos dias estava me sentindo seguido. Tinha a constante sensação de estar sendo observado de muito perto, não por uma, mas por várias pessoas. Isso estava começando a me incomodar, então prezava os momentos que conseguia ficar sozinho e isolado dos outros. Estava quase cochilando quando ouvi vozes abafadas vindas da direção do lago. Estava muito escuro e algo me dizia que iluminar o lugar com a varinha não era a melhor das idéias, então levantei e caminhei devagar na direção das vozes.

Já estava perto do lago e parei atrás de uma das árvores. Tinham cinco figuras com longos mantos negros andando em fila indiana, duas delas mais baixas comparadas as outras, e uma sexta mais afastada guiando uma pessoa com a cabeça coberta com um pano. Dava pra perceber nitidamente, mesmo no escuro, que o encapuzado estava quase apagado, e andava quase caindo. Mantinha-se de pé apenas por estar sendo segurado pelo outro. Sentia meu coração quase saltar pela boca, tinha certeza absoluta de que sabia do que aquilo se tratava. Esperei até que estivessem um pouco mais distantes e os segui, tomando cuidado para não ser visto. Segui os sete até as masmorras do castelo, mas quando estavam se aproximando das salas de aula, desviaram por um caminha que nunca tinha notado estar ali. Era quase imperceptível e tive que apertar o passo se não quisesse perdê-los de vista. O que liderava o grupo fez um movimento rápido com as mãos e a varinha tocando em uma parede de pedra e ela se abriu, dando passagem para eles. O último do cortejo, preocupado em manter o encapuzado de pé, não fechou a passagem ao entrar e me esgueirei pela fresta pequena que ficou aberta. Achei que não era seguro dar qualquer outro passo, e fiquei agachado atrás de algumas pedras logo na entrada. Assim mantinha distancia e conseguia ver e ouvi-los perfeitamente.

‘Pegue a caixa de madeira, Mordred!’ Um dos homens ordenou ríspido, e pelo som grave de sua voz, sabia que era um adulto

‘Para que?’ O que atendia pelo codinome de Mordred respondeu com a voz tremula e logo percebi que era um garoto, quase uma criança

‘Não faça perguntas, apenas obedeça!’ O outro homem disse sem paciência e o garoto tremeu de leve, obedecendo imediatamente

‘Sabe por que estão aqui hoje, Maleagent?’ Um terceiro homem indagou o outro mascarado baixinho e ele sacudiu a cabeça negando. O homem riu ‘Accolon, por favor’ Disse indicando o que Mordred tinha medo

‘Estão aqui hoje por que foram julgados especiais’ Começou a falar caminhando pela masmorra, e cada palavra que dizia era absorvida com atenção pelos outros ‘Todos os anos escolhemos aqueles que prometem ter grande destaque na Irmandade, e para determinar quem é de fato o escolhido, existe uma iniciação’

‘Vocês sabem quem é esse homem?’ O encapuzado que até então só escoltou o homem se pronunciou, atirando ele em cima de uma mesa de pedra e descobrindo seu rosto. O homem tinha uma expressão de pavor no rosto que nunca havia visto antes ‘Ele é um traidor! Seu nome é Perceval, e ele foi um de nós. Foi, pois a partir de hoje não é mais considerado um Rei e Sombra’

‘Perceval nos traiu. Contou segredos que jurou proteger a pessoas que não são dignas de saber tais coisas. Ele expôs os Reis e Sombras a meros bruxos mestiços!’

‘E agora deverá pagar o preço por sua traição’ Accolon pegou a caixa da mão de um tremulo Mordred e a abriu. Somente quando retirou os objetos de dentro que pude ver que eram uma seringa e um frasco com um liquido preto ‘Mordred, sabe o que é isso? E também o que ele faz?’

‘Veneno de Grindylow’ Respondeu com a voz falha ‘Ele deixa a pessoa confusa, com febre e vendo ilusões. E depois de algumas horas ela começa a evacuar sangue até morrer’

‘Qual dos dois vai dar ao traidor o que ele merece?’ O homem mais gordo dos adultos pegou a seringa da mão do outro e tentou empurrar aos menores. Eles recuaram assustados.

‘Calma, Agravain. Calma’ Accolon tirou a seringa da mão dele e estendeu a Mordred ‘Vá em frente, mostre que é meu filho de verdade. Gauvain não recuou quando teve sua chance, não me decepcione’

O garoto encarou o suposto pai e mesmo estando de máscara, sabia que sua expressão era tão apavorada quanto à do tal Percival, deitado na mesa de pedra e amarrado com cordas. Mas ainda que com medo, o garoto pegou a seringa e caminhou até o homem. Ele tremia da cabeça aos pés, duvidava que conseguisse cravar a agulha no braço dele naquele estado. Ele hesitou e olhou para o outro menino, que tremia mais do que ele. Pensei que ele ia se recusar, que fosse passar o fardo para o amigo, mas se virou de repente e em um golpe rápido, cravou a agulha no pescoço do homem. Percival parecia estar tendo uma convulsão, mas logo se acalmou e começou a babar. O garoto arquejava e seu amigo foi socorrê-lo, mas ele parecia estar com falta de ar. Num impulso, desesperado para conseguir respirar, arrancou a máscara que escondia seu rosto. Meu susto ao ver seu rosto foi tão grande que tropecei nas pedras e todos olharam alarmados na minha direção, atraídos pelo barulho. Levantei sem me importar em ser visto e corri desabalado para fora da masmorra, conseguindo chegar ao térreo e me misturar aos alunos que saiam da aula de astronomia antes que eles alcançassem. Meus amigos me olharam assustados, mas não disse nada. Segui junto com eles para as republicas com o rosto suado e pálido, e duvidava que fosse conseguir dormir. O pavor estampado no rosto daquele homem ainda ia me assombrar por muito tempo, assim como a expressão desesperada de seu assassino.