Thursday, December 06, 2007

O último andar da República Avalon era o único que mantinha uma réstia de luz acesa àquela hora da noite. No quarto, a fonte de luz se originava de uma lamparina pousada na mesa de cabeceira de uma das ocupantes: uma menina pálida, de olhos verdes escondidos atrás de óculos, e longos cabelos loiros que caíam em seus ombros. Lavínia Durigan. Ela folheava um pesado livro de Transfiguração, mas as palavras já passavam por sua cabeça sem se fixar em lugar algum. Ao seu redor suas amigas respiravam fundo e dormiam profundamente.

“Para se transformar um gato em um relógio cuco, o praticante deve se concentrar nos movimentos firmes da varinha...”.

Fechou o livro com violência. Estava se sentindo exausta. Sabia que não conseguiria terminar aquele relatório naquela noite. Não enquanto não tirasse ao menos algumas horas de sono... Jogou o livro de lado e se levantou para trocar de roupa. Mas antes que pudesse alcançar o armário, antes mesmo de qualquer outra coisa, seus olhos se detiveram no calendário preso no meio do quarto e ela sentiu uma terrível sensação de desconforto quando viu o quadradinho do sétimo dia de dezembro assinalado com flechas vermelhas e os dizeres “Aniversário do Ricard, 17 anos”. Se ela não tomasse uma providência, esse seria o primeiro aniversário (desde o ano em que se conheceram), que ela e Ricard passariam brigados. E a perspectiva disso fez com que a menina tomasse uma decisão...

°°°
‘Srta. Durigan, terá de treinar um pouco mais a sua transfiguração... ’ Ivana Mesic passou ao lado da carteira de Lavínia pousando os olhos sobre o relógio cuco com um grande rabo peludo e orelhas de gato. A menina se sentiu queimar.

‘Eu sei. Desculpa professora. Vou praticar mais. ’

A professora a encarou com severidade e passou. Ela se sentiu desabar. Era incontestável o fato de que seu rendimento escolar andara caindo muito desde que brigara com Ricard e terminara seu namoro com Victor. Ela nunca admitiria culpa em nenhuma das separações, mas sabia que precisava voltar atrás, de alguma maneira.

‘Está tudo bem, Vina?’ Nina perguntou baixo tirando os olhos de seu relógio cuco impecavelmente transformado e encarando a amiga com curiosidade. Lavínia sacudiu os ombros.

‘Está, obrigada. Só estou um pouco cansada e acho que não fixei os movimentos dessa transformação’

A sineta da aula tocou e ela demorou um pouco mais do que o natural para juntar suas coisas e sair da sala. A verdade é que queria um tempo sozinha. Mas nem tinha alcançado o corredor e uma voz tão familiar chegou aos seus ouvidos que ela quase não se sustentou.

‘Você é mesmo muito orgulhosa, Lavínia Durigan’ era Ricard. Seu motivo de maior aflição naquela semana. Ela queria tanto correr para lhe abraçar forte e dizer que sentia muito... Como faria isso sem parecer frágil e dependente demais?

‘Do que você está falando?’

‘Estou falando dessa sua cabeça dura! Está estampada na sua testa a frase: “Sinto muito Ricard, por ter sido uma idiota. Será que você pode me desculpar? Podemos ser amigos de novo, porque eu estou sentindo muito a sua falta!”. Por que você não diz? Por que simplesmente não admite, UMA VEZ NA VIDA, que a briga foi sua culpa. Que estamos sem nos falar por que você quis assim?’

Ela não sabia o que responder. Ele tinha tirado da boca e da cabeça dela exatamente as mesmas perguntas que estivera se fazendo há semanas.

‘Sinto muito, Ricard. Eu realmente agi como uma idiota com você, com a Miyako. Eu já me arrependi muito por isso, de verdade’ ela disse espontaneamente, mas pesando cada palavra. Ricard também as sentiu.

‘Você disse mesmo que sente muito? Que está arrependida? Que a culpa foi sua? Tem certeza que está se sentindo bem?’ Ele perguntou incrédulo se aproximando dela, que foi obrigada a rir.

‘Não me faça repetir tudo de novo, ok? Você sabe o quanto isso já está sendo difícil para mim...’

‘Sei, sei sim. Pedir desculpas nunca foi do seu feitio. Nem errar uma transformação considerada simples...’

‘Não é de meu feitio passar o seu aniversário da “maior idade” sem falar com você. Eu já estava enlouquecendo!’

‘Então vamos passar uma borracha definitiva em cima disso, tudo bem? Mas com uma condição: eu escolho minhas namoradas.’

‘Feito’ ela concordou rindo e se largou no ombro dele, enquanto ele a abraçava apertado. Por mais que ela aprontasse e bagunçasse a vida dele, ele nunca poderia negar: não conseguiria viver longe dessa menina.

°°°
‘Tudo pronto’ Milla disse olhando ao redor. A sala de estar da República Osíris estava toda decorada com balões e serpentinas coloridas. Uma mesa com bolos e doces também havia sido preparada.

‘Ainda bem que terminamos tudo antes de Ricard voltar... Festa surpresa só tem graça se for surpresa mesmo!’ Lavínia sorriu satisfeita colocando um chapéu cônico na cabeça. Consultou o relógio. ‘Eles devem estar aqui a qualquer momento...’

‘Espero que sim. Estou com fome’ Evie comentou olhando desejosa para a mesa de doces.

Sentaram-se. O plano da festa surpresa havia partido, é claro, de Lavínia. Mas logo suas amigas acataram e a ajudaram a preparar tudo no mais absoluto sigilo. Não tinham comentado nem mesmo com Micah, Ty, Iago, Victor ou Chris Parker. Sabiam que qualquer deixa seria o suficiente para Ricard descobrir tudo alguns dias antes. E esperaram... Não se passaram apenas alguns ‘momentos’ como Lavínia imaginou que passariam. Passaram-se vários minutos, que se transformaram em horas.

‘Não agüento mais esperar! Onde eles estão?’ Annia levantou impaciente indo até a janela. ‘A Spartacus também está toda escura! Eles não devem estar aqui no castelo...’

‘É claro que estão no castelo! Onde mais estariam?’ Evie perguntou depressa acompanhando Annia em uma vistoria dos terrenos pela janela. Estavam desertos. Olhem ali, é o Chris! ‘CHRIS!!!’

Seu grito fez eco nos gramados escuros e gelados do castelo. Um garoto loiro parou de chofre quando estava prestes a entrar na República escura e se virou. Ao ver Evie pendurada na janela, correu sorridente até a garota.

‘Oi Evie. Oi meninas. O que estão fazendo aqui? A Avalon fica do outro lado, não fica?’

‘Sabe nos dizer onde estão Ricard, Victor, Ty, Micah, Chris Parker, Iago ou qualquer um desses?’ Evie perguntou ansiosa ignorando a curiosidade de Chris. Ele sacudiu os ombros.

‘Os vi quando estava saindo da aula de Astronomia. Os ouvi comentarem de irem até o vilarejo comemorar o aniversário de alguém... Aconteceu alguma coisa?’ Perguntou quando percebeu os olhares estressados e flamejantes que as meninas trocaram.

‘Tem certeza? Todos eles foram ao vilarejo?’ Milla perguntou devagar, querendo ter certeza do que estava de fato acontecendo.

‘Não os vi saindo, mas estavam todos juntos sim. De quem é o aniversário?’

‘Ricard. Mas esse é o último aniversário da vida dele, espero que aproveite muito!’ Lavínia disse tremendo de raiva e arrancando o chapéu com violência.

‘E eu juro que mato o Iago. Ah, mato!’

‘Pois eu é quem não vou ficar plantada aqui esperando esses idiotas voltarem. Vamos levar tudo para a Avalon e podemos fazer nossa própria festa!’ Evie disse tentando transparecer indiferença e um surto de animação, mas a tentativa falhou. Seus olhos também brilhavam de raiva.

‘Isso, boa idéia. Ótima idéia!’ Nina se levantou parecendo carrancuda e ajudou a amiga a recolher os doces na mesa.

Poucos minutos depois saíram com os braços carregados de doces e garrafas de whisky de fogo e cerveja amanteigada. Trancaram a porta do quarto e cada uma se sentou em sua própria cama, com uma garrafa na mão e um bom pedaço de bolo de aniversário, que fora generosamente fatiado. Annia levantou sua própria garrafa encarando as amigas.

‘Um brinde à nossa festa, e à nossa noite, que será muito mais divertida que a dos garotos.’

Todas levantaram suas garrafas e tomaram um gole em seguida. Passaram horas bebendo, comendo doces e falando mal dos homens. Tinham vários planos de vingança arquitetados, mas no fundo todas elas sabiam que nenhum deles atingiria qualquer um dos meninos como essa saída privada ao vilarejo tinha afetado todas e cada uma delas...