Estava na casa de Chris passando o feriado de páscoa e era nossa última tarde lá, na manha seguinte pegaríamos o trem de volta para Durmstrang. Aproveitando que a família conversava na sala, o pai e os tios dele me chamaram até o escritório para conversarmos. Explicaram-me o que estavam planejando fazer e as medidas de segurança que deveria tomar daqui pra frente, e por tempo indeterminado. Já havia perdido a noção do tempo que estávamos trancados lá dentro.
‘Então enquanto não conseguirmos provar, você está absolutamente proibido de andar sozinho pelo castelo, Micah’ O pai de Chris, Kegan, falou muito sério
‘Eu sei o que eu vi, eu lembro!’ Exclamei revoltado ‘Antes de me apagarem, vi o rosto de cada um. E depois, mesmo usando máscaras, reconheci suas vozes. Não estou louco, foram eles!’
‘Nós sabemos e acreditamos em você’ Agora era o padrinho dele que falava ‘Mas não temos provas, e até conseguirmos elas, não há nada que possamos fazer’
‘Tem mais alguma coisa que você queira nos contar, Micah?’ O tio dele que era Ministro me olhou desconfiado e desviei o olhar dele
‘Não é nada demais’ Respondi tentando fazer parecer besteira
‘Deixe que a gente decida se não é nada demais mesmo, conte’ Ben insistiu
‘Dois dias antes de me pegarem, ia encontrar com um cara da Irmandade. Descobri o nome dele em uns arquivos antigos, entrei em contato e ele se dispôs a me contar tudo que sabia. Mas nunca cheguei a conhecê-lo, pois ele furou comigo no dia seguinte vi no jornal que ele tinha morrido’
‘Por que não nos contou isso desde o começo, Micah?’ Kegan levantou andando de um lado para o outro
‘Porque eu já tenho ficha na polícia, não queria passar por tudo que passei outra vez!’ Respondi irritado ‘Acha que não iam me deter assim que descobrissem que tinha marcado com o cara horas antes dele aparecer morto boiando em um lago?’
‘Você tem ficha na polícia?’ Wayne perguntou curioso ‘O que fez?’
‘Isso não vem ao caso’
‘Tudo bem, não importa. Isso é tudo? Não deixou de contar nada?’
Desviei o olhar dele calado e em segundos, um filme passou pela minha cabeça. Lembrei dos vultos perto do lado, do encapuzado que agora sabia ser Arthur Strauss, da masmorra, os garotos, o adulto entregando a seringa ao mais magro, ele hesitando, mas matando o homem, e seu rosto sendo revelado com uma expressão de pânico. Voltei a encarei os três, que me observavam com atenção.
‘Não, é só isso’
‘Já terminaram?’ Chris entrou no escritório com um telefone na mão ‘Estão começando a achar esquisito vocês quatro trancados aqui, já não sei mais o que inventar’
‘Já terminamos, vamos voltar pra sala’ Levantei depressa do sofá e caminhei até ele ‘Evie já chegou? Ainda estou com a chave dela’
‘Não, ela não vem mais’ Disse desanimado ‘Dimitri acabou de ligar avisando que ela não ia poder vir. Falou algo sobre um almoço em família, não entendi bem. A voz dele estava esquisita’
‘Posso usar seu telefone?’
‘Claro, à vontade’
Peguei o telefone e liguei para a casa da Evie. Estava com a chave dela e queria devolver antes de voltarmos para a escola. Uma mulher atendeu e pedi para chamá-la. Passaram alguns segundos e ouvi a voz de um homem indagando quem era e depois pegando o telefone.
‘Evangeline não pode falar com você’ O homem falou ríspido ‘Não sei como tem esse número, mas não ligue mais pra cá, entendeu?’
Ele desligou o telefone na minha cara e fiquei encarando o aparelho sem entender nada. Chris parou do meu lado me olhando confuso.
‘O que foi? Conseguiu falar com ela?’
‘Não, uma mulher que devia ser a madrasta dela atendeu e disse que ia chamar, mas ai um homem pegou o telefone e disse que ela não podia falar, e desligou’ Esqueci propositalmente de contar a parte onde ele mandou que não ligasse mais para lá
‘Deve ser o pai dela, ele é meio esquisitão mesmo. Detesta ser incomodado às vezes, depois você tenta de novo’
Dei de ombros e voltei com ele para a sala onde sua mãe já chamava todos para o almoço. Tinha alguma coisa muito errada acontecendo...
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O trem parou na estação já à noite e devagar os alunos começaram a desembarcar. Segui com Chris e Ty de volta para a república e como não vi sinal da Evie durante toda viagem, deixei a mochila no quarto e sai outra vez. As meninas estavam conversando na porta da Avalon quando cheguei, e já foram logo avisando que ela não tinha chegado. Dei meia volta para ir até a enfermaria pegar o novo estoque de poções que ainda precisava tomar, mas Ty, Iago e Chris me frearam antes que pudesse dar mais que cinco passos.
‘Onde pensa que vai?’ Iago parou bem na minha frente ‘Esqueceu que não pode andar sozinho, ainda mais à noite?’
‘Só ia até a enfermaria, estão todos nas repúblicas!’
‘Eles estão só esperando um deslize seu, Micah’ Ty apoiou Iago ‘Quando verem você sozinho, atacam outra vez’
‘Ok, ok, vocês venceram. Vamos logo’
Caminhei com eles na minha cola até a enfermaria e quando chegamos à entrada do castelo que levava a ela, eles sentaram no banco do jardim para esperar e entrei sozinho. Alguns passos ao menos eu podia dar sem as sombras atrás. Abri a porta da enfermaria, mas parei na metade. Ouvi a voz de Evie vindo lá de dentro e a empurrei apenas mais um pouco, o suficiente para que pudesse ver sem ser visto. Ela estava sentada em uma das camas e tinha uma tipóia no braço. A enfermeira entregou um copo com um liquido quase transparente em sua mão e ela bebeu, fazendo uma careta.
‘Sei que é ruim, mas já devia estar acostumada ao gosto’ Disse pegando o copo de volta
‘Nunca vou me acostumar’
‘Conhece as regras, não posso deixar que volte para a república hoje. Vai passar a noite aqui para a poção fazer efeito e amanha de manhã pode sair’
‘Eu sei, não estava pensando em sair de qualquer forma’ Respondeu com uma voz abatida e deitando na cama
‘Você precisa contar a alguém, minha querida’ A enfermeira falou com uma voz terna
‘Foi um acidente, ninguém teve culpa’ Evie respondeu a cortando e virou de lado ‘Acho melhor eu dormir, assim não sinto dor’
A enfermeira soou cansada e voltou para a sala dela sem dizer mais nada. Fechei a porta devagar e voltei para o jardim, onde os três discutiam sobre quadribol.
‘Não pegou as poções?’ Chris perguntou vendo minhas mãos vazias
‘Não estão prontas ainda, pego amanha de manhã. Vamos voltar, está muito frio’
Eles acreditaram no que disse e não questionaram, voltando a falar de quadribol enquanto caminhávamos de volta para a república. Se antes já achava que algo estava errado, agora tinha certeza. Só não fazia idéia do que, e nem de como descobrir sem desencadear uma nova série de brigas com ela.