Friday, November 30, 2007

A chuva que caiu a semana inteira não dava trégua, e os pingos que batiam na janela eram tão grossos que faziam barulho. Terminava de arrumar minha cama ainda com sono e já me preparava para passar o sábado inteiro dentro da república refugiada da chuva quando um ponto muito preto do lado de fora foi crescendo vindo de encontro com a janela. A coruja bateu no vidro com violência e se deixou cair no parapeito.

Abri a janela apressada e peguei Morgan nos braços, em pânico. Minha coruja estava ensopada e parecia cansada e abatida da viagem. Peguei o envelope molhado da pata dela e a deixei ficar em cima da cama, no macio, até que estivesse seca outra vez. Mal consegui ler o conteúdo da carta devido ao estado em que ela se encontrava.

‘Evie,

Desculpe a demora em responder, mas não queria mandar Morgan de volta no temporal que caía aqui na Califórnia. Fiquei surpreso com o convite, mas feliz. Espero você no Café Cultural às 11hs.

Martin’

O pergaminho molhado ia se desfazendo na minha mão e tive que jogá-lo fora. Olhei o relógio do quarto, já eram 10:30, precisava ir ou me atrasaria. Usei o feitiço secante em Morgan e quando ela já estava seca e aquecida outra vez, deixei a república enrolada em casacos e encolhida debaixo de um guarda-chuva.

O caminho até o vilarejo não era longo, mas com o gramado da escola transformado em um lamaçal ficava difícil caminhar depressa. Então quando consegui chegar ao Café Cultural, Martin já me esperava do lado de fora. Ele estava de braços cruzados com um grosso casaco, tremendo de frio. Não pude deixar de rir. Onde ele mora é raro fazer frio, não estava acostumado.

‘Como consegue estudar aqui?’ Disse me abraçando ‘Estou congelando! E só estou aqui há 5 minutos’

‘Por que não entrou? Está frio aqui fora. Sua resposta só chegou hoje’

Entramos no Café e logo encontramos uma mesa vazia perto da janela. Pouquíssimos alunos de Durmstrang circulavam pelas ruas, mas alguns corajosos desafiavam o tempo e os guarda-chuvas para sair um pouco dos limites do castelo. Pedimos dois cafés e alguns biscoitos e ficamos nos encarando um tempo sem dizer nada. Martin foi quem falou primeiro.

‘Então, vai me dizer por que pediu para lhe encontrar aqui hoje, ou vou precisar puxar o orbe da mochila?’ Disse mordendo um biscoito. Ri ‘Fiquei sabendo que você e Josh terminaram’

‘Ah ele te contou então?’ Falei sem animo

‘Josh conversando comigo e se abrindo sobre sua vida pessoal?’ Martin falou rindo e ri também. Tinha feito uma pergunta idiota ‘Ele contou pra Margo, Kevin e eu ouvimos por trás da porta’

‘Que coisa feia, Martin!’ Fingi estar chocada ‘Espiando seu irmãozinho quando ele está se abrindo com a mãe de vocês’

‘Em minha defesa, não tive a intenção. Nem sabia o que estava se passando. Kevin era quem estava ajoelhado no corredor com um copo encostado no ouvido e me chamou’ Ele tomou um gole do café e me encarou ‘Mas não foi para isso que você me chamou, então desembucha’

‘Certo, vou direto ao ponto’ Parei de olhar as pessoas na rua e olhei para ele ‘Quero que você me conte tudo que sabe sobre Micah Sanders Wade’

Martin engoliu o café rápido demais ao ouvir o que disse e queimou a língua. Levou um tempo até se recuperar do acidente e me encarava surpreso, como se a última coisa que esperasse ouvir fosse aquilo. Esperei calada enquanto ele me olhava pensativo, e por fim terminou o café e se ajeitou na cadeira.

‘Estou surpreso, confesso. Não sabia que conhecia os amigos do Josh, ele nunca os apresenta a você’

‘Ele estuda aqui, foi transferido em Setembro. E ele e Josh não são amigos. Muito pelo contrário, se odeiam’

‘Verdade, não são amigos... agora’ Martin completou e me espantei ‘Mas já foram muito amigos, eram como irmãos. Arriscaria dizer que Josh e Micah eram mais amigos do que meu irmão é com o seu’

‘Como isso é possível? Vi o modo como os dois se olhavam durante as três semanas de jogos, e se aquilo não era ódio mortal, não sei o que pode ser’

‘Algumas coisas que aconteceram nas férias de Julho levaram os dois a romperem a amizade definitivamente’ Ele comeu outro biscoito e riu ‘E imagino que vá me pedir pra contar o que aconteceu’

‘Lógico. Quem sabe assim eu entenda porque Josh estava tão esquisito nas férias’

‘Bom, vou contar o que eu sei, pois não estava presente. Só posso contar o que ouvi, e pude ouvir as duas versões da história. Quando terminar, você tire suas próprias conclusões’

Concordei com a cabeça e encostei-me à cadeira ouvindo ele me relatar a história. Ouvi sem interrompê-lo me contar que Micah e Josh, junto com mais quatro amigos, se envolveram na morte de um garoto da idade deles. Uma brincadeira que saiu errado e resultou no afogamento do menino no lago. Martin contou que foi Micah quem empurrou o garoto, mas não tinha a intenção de jogá-lo na água, e sim apenas afastá-lo de Josh, que tentava enforcá-lo. Segundo ele, todos brigavam no barco e a situação saiu do controle quando o garoto mexeu com o pai de Josh.

‘Então um acusou o outro na delegacia para se livrar da culpa?’ Perguntei incrédula quando ele terminou

‘Não. Josh acusou Micah para se safar. Micah admitiu ter empurrado Ryan no lago, mas que não tinha intenção alguma de matá-lo, pois sequer sabia que ele não nadava. A única acusação dele contra Josh foi à de que ele era um mentiroso’

‘E quem você acha que contou a verdade?’

‘Honestamente?’ Martin desviou o olhar de mim um instante e passou a encarar a rua deserta ‘Acredito na versão do Micah. Josh saiu da história sem cumprir nenhum tipo de pena, e ainda teve a ficha limpa. Micah foi quem pagou o pato. Teve o nome fichado e forçado a fazer trabalho comunitário pelo resto do mês’

‘Mas não tinham outras quatro pessoas no barco?’ Se antes estava incrédula, agora estava indignada ‘Por que só ele pagou?’

‘Ele mesmo livrou a cara dos outros amigos. Assumiu a culpa sozinho, apesar dos protestos deles. Sabia que se alguém ali era culpado, era apenas ele e Josh. Mas Margo pagou um bom advogado para Josh, e no tribunal ele levou a melhor, deixando Micah levar a culpa sozinho’

Encostei-me à cadeira outra vez de braços cruzados e também passei a encarar a rua deserta. Vez ou outra passava alguém encolhido e ficamos assim, sem conversar, por um longo tempo. Martin sabia que eu estava absorvendo tudo que ele havia me contado e esperou até que eu falasse primeiro.

‘Tem outra coisa me incomodando’ Disse vaga ‘Será que Micah sabia que eu era a namorada do Josh?’

‘Isso não posso confirmar, pois não sei o que ele conversa com os amigos. Mas se ele nunca nem ao menos apresentou você a nenhum deles, é provável que não’

‘Às vezes penso que ele já me conhecia. É estranho, parece que ele sabe tudo sobre mim e só está aqui há três meses’

‘Gosto do Micah, ele sempre foi legal comigo, diferente dos outros amigos do Josh que freqüentam nossa casa’ Disse e tornei a encará-lo ‘Um dos motivos pelo qual Margo faz questão de ignorar que sou seu filho foi porque depus a favor de Micah no tribunal, contra meu irmão. Não achei justo o que Josh fez, ele teve mais culpa’

‘Também gosto dele e nos tornamos amigos, por isso queria entender algumas coisas’

‘Está sem saber o que fazer, não é?’ Falou rindo de leve ‘Sente que precisa escolher um lado, que não pode jogar pelos dos times, acertei?’ Concordei com a cabeça e ele riu outra vez ‘Se conselho fosse bom a gente vendia, mas vou lhe dar um assim mesmo: escolha sim um lado, mas escolha aquele que faz com que você se sinta melhor. Foi o que fiz, e descobri que foi a melhor coisa que poderia ter feito’

Sorri para ele, mas não respondi. Ele sabia que eu tinha entendido o recado e encerramos o assunto. Passamos parte da tarde conversando sobre os últimos meses e tudo que andava acontecendo. Já começava a escurecer quando deixamos o Café e a chuva dava indícios de que daria uma trégua. Martin me acompanhou até o portão da escola e nos despedimos antes dele desaparatar.

‘Gosta de passear na chuva?’ Ouvi a voz de Micah atrás de mim e me virei ‘Bom saber que é fácil agradar você’

‘Temos o mesmo gosto então’ Respondi parando para ele me alcançar ‘O que está fazendo aqui fora?’

‘Resolvi dar uma volta, espairecer um pouco’ Micah falou sério e depois riu ‘Como se eu tivesse muitos problemas... Está voltando para a república?’ Confirmei com a cabeça e ele estendeu o braço ‘Então se me permite acompanhá-la... ’

Fingi pensar um pouco antes de responder, mas sorri e segurei seu braço. A chuva agora havia parado por completo e voltamos pisando nas poças de lama pelo caminho, Micah fazendo questão de pisar com mais força para espirrar lama o mais alto que podia pelas minhas pernas. Havia entendido bem o que Martin tinha dito, e não parecia que teria dificuldades em escolher o meu lado, no fim das contas.